O Conde de Moldávia

sexta-feira, abril 1





A angústia ainda insistia em infernizar meus instintos. Passaram-se quarenta anos desde que decretei o fim do Conde da Moldávia. Recordo com amargura de todos os episódios daqueles vinte e sete dias, em que caçamos a terrível criatura noturna, sem descanso. O maldito refugiava-se nos lugares mais remotos e de difícil acesso. Foi assim, em Bucareste, Praga, Dublin e Colônia, mas, o Conde não resistiu em voltar ao seu esconderijo original, após perceber que nossa caçada seria árdua.
Em 1956, fomos contatados por um grupo de cristãos aflitos de Kishinev, capital da República da Moldávia, com o intuito de dar fim a tenebrosa carnificina que se abateu nos condados à leste da capital, em razão da sede insaciável do Conde Draculnov. As vítimas, por conseguinte, eram sempre encontradas com todo ou quase todo o sangue drenado do corpo. Não foi difícil reconhecer seus rastros, mediante sua forma característica de agir. Os clássicos sinais de pequenos orifícios no pescoço, pulso, ou até mesmo na virilha, não nos deixava em dúvida. Aquilo era obra de um vampiro.
Com o apoio de alguns aldeãos locais, que dispostos a acabar com a trágica sina do lugarejo, não me custaram tão caro quanto imaginava, devido aos perigos envolvidos, partimos em busca das primeiras pistas do Conde. Seguindo minha própria natureza de caçador, me dei conta que sempre estávamos dois dias de desvantagem em seu encalço. Túmulos foram escavados. Escrituras foram traduzidas. Invadimos monastérios e vasculhamos sórdidos túneis, na incansável busca pelo demônio. Apesar da fuga, a necessidade de sangue do vampiro também urgia, e esse foi seu pecado. Pois começamos a seguir a trilha de cadáveres que este deixava pelo caminho. Em Dublin, tivemos a grata surpresa de encontrar catacumbas recém reviradas, o que nos dava a exata noção de que o conde procurava abrigo nos lugares mais sombrios e inacessíveis. O ser perverso fez considerável baixa em nosso grupo de trinta homens, pois foram dois os encontros que tivemos com a fera. Ele sempre saiu em vantagem, deixando para trás muitos de nossos homens dilacerados por sua fúria incontrolável. Quanto mais acuado era, mais perigoso se tornava.

O desespero do Conde em chegar a todo custo em seu refúgio, o Castelo de Vaslui, fez com que ele não se apercebesse de todos os cuidados para nos despistar. Através de valiosas informações de sobreviventes que ousaram transpor seu caminho, nos antecipamos a ele, já percebendo seu intento em voltar para o Castelo. Desta forma, preparamos uma surpresa fatal ao Conde Draculnov, que após uma árdua perseguição, não sem antes vitimar outro grande número de homens que tiveram suas cabeças decapitadas, chegamos ao seu abrigo, no porão do castelo, seguindo trilhas de archotes presos às paredes que mal iluminavam os degraus cravados de musgos e presenteados por todo sortilégios de pestes, como baratas, ratos, pequenos répteis, além do terrível ar fétido que inundava o lugar em toda a sua diminuta dimensão.
Lá embaixo, um pesado sarcófago, feito pelo mais negro dos mármores, aguardava a chegada de seu dono.
Salpicamos, no interior de seu local de repouso, água benta retirada de uma das igrejas católicas ortodoxas em nossa passagem por Bucareste, na Romênia. Preenchemos os quatro cantos do porão com homens armados com estacas afiadas de carvalho, espadas e adagas, e usamos colares de alho com as cabeças do tamanho de maças, além de lenços de seda embebidos em água benta.

O maldito não tardou em buscar seu túmulo de descanso, mas o vampiro não teve tempo de recarregar suas energias. Adentrou ao mal iluminado cômodo. Seus movimentos eram tão leves, que nos surpreendemos com sua chegada, pois sequer ouvimos seus passos na escada nefasta. O Conde, sagaz como um lobo do mato, sentiu nossa presença quase que de imediato em sua alcova. Um dos homens não se conteve em aguardar minha ordem para o iminente ataque, e partiu para cima do vampiro de modo aparvalhado. Como imaginado, o Conde não teve trabalho em se desvencilhar do seu oponente, o arremessando com violência contra a alta parede de pedra lateral. Para nosso azar, era exatamente a parede na qual pendia um imundo castiçal, que para nós servia como a única fonte de luz daquele ambiente funesto. Então, a escuridão nos invadiu trazendo o desespero e medo aos homens que assim, colocavam toda a sua coragem e avidez à prova. Pelos gritos desesperados dos homens em meio à total penumbra que nos cegava, só pude pensar em algo que não fazia jus a minha forma de agir, mas mediante ao total negrume e perigo real, gritei aos homens para que atacassem todos de uma vez. Lancei mão da garrafa que carregava no cinto de couro e espalhei todo o seu conteúdo para cima, fazendo a água benta bailar no ar na esperança que algumas gotas pudessem fazer o máximo de malefício ao Conde. Minha estratégia, ainda que mal feita, deu resultado. O grito pavoroso de dor do vampiro rompeu o ar, e nos ajudou a imaginar sua localização. Com passos trôpegos, bati com as pernas naquilo que parecia ser seu sarcófago e caí no chão, perdendo minha afiada lança de carvalho por um breve momento. Tateei o chão na procura incansável de minha arma, mas o que encontrei foi a mão gelada e torpe do Conde. Por puro reflexo, tentei puxá-la ao meu encontro, mas o vampiro agarrou meu pulso com força e cravou as unhas afiadas na minha carne, fazendo meu sangue brotar como vapor incandescente. Após isso, só tive a certeza de que o vampiro estava imobilizado depois que dois de meus homens caíram por cima do corpo gelado do monstro, fincando-lhe duas estacas, uma no estômago e outra certeira, direto em seu coração negro. Somente assim, senti seus compridos e nodosos dedos afrouxando meu punho.

Com muita dificuldade, conseguimos tirar o corpo pesado do Conde daquele sepulcro e o carregamos através dos cavalos que nos serviam de montaria em toda a caçada.
Depois deste encontro, inexplicavelmente fui acometido por um sem números de doenças, que me debilitaram por completo, não me deixando lograr participação nos ritos finais para matar o vampiro definitivamente. Além de mim, apenas outros quatros bravos caçadores restaram para terminar o serviço árduo. O que sei, é que fiquei acamado por quase um mês após a nossa bem sucedida batalha. Uma violenta pneumonia, devido ao frio causticante do inverno europeu, me derrubou, mas em pouco tempo fui capaz de voltar pra casa com a quase certeza do dever cumprido.
Antes de voltar para Viena, ainda me encontrei com meus quatro companheiros de peleja que me relataram ter finalizado todo o cerimonial, dando descanso eterno ao vampiro. Estranhei apenas, que enquanto me narravam o ocorrido, nenhum deles foi capaz de me olhar nos olhos.

O tempo passou, mas aquela velha sensação de que algo não havia sido devidamente terminado me perseguiu por todos estes anos.
Somente agora, depois de ter completado setenta e tantos anos de vida, é que tive a coragem, se é que assim posso dizer, de voltar para a Moldávia e caminhar por suas estreitas e sombrias ruas e vielas. Há uma espécie de feira permanente na cidade, pois a lenda do Conde Draculnov ganhou as fronteiras do país, fazendo com que os vizinhos europeus viessem conhecer aquele que foi o lugar de tantas desventuras do terrível vampiro e da audácia de seus caçadores dando fim ao seu reinado de tormento, e assim os moradores locais mantêm algumas festividades para os convidados estrangeiros, aproveitando-se para ganhar algum dinheiro, com quinquilharias de recordação aos visitantes ávidos pelas histórias que são aumentadas ano após ano.
Passo pelas pessoas interessadas nos artigos das barracas, caminhando com dificuldade e sempre apoiado na minha velha bengala de madeira de carvalho.
A sensação de estar sendo observado me invade. Há algo errado. Paro e olho para trás sentindo uma presença familiar bem perto de mim. Não o consigo ver, mas sei que ele me acompanha com os olhos sem pestanejar. Continuo andando em meio a toda gente, que parece não perceber minha aflição. Levanto a gola de meu casaco, como se isso pudesse deter o possível ataque que estou prestes a sofrer. No limiar da minha velhice, talvez seja o momento de partir deste mundo. Quem sabe não tenha chegado a hora da tão aguardada vingança do Conde. Quem sabe, eu ainda não seja brindado com a vida eterna, como por prêmio por reencontrá-lo depois de tantos anos, e por ter sido um valoroso oponente. Afinal, ao que me parece, ele manteve-se sempre aqui, como a esperar pacientemente o meu retorno.

Um Conto de Lino França Jr

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