Aos Pés de Cristo

segunda-feira, março 28




Sinto o sol queimando em minhas costas. Minha pele arde, minha carne está em chamas. O suor verte de minha testa turvando minha já ofuscada visão. Sinto meu corpo pesado, entorpecido. Não sei como vim parar aqui, nem mesmo sei dizer onde exatamente é aqui. Tudo que me lembro é de estar no imundo quarto cujo qual pelo governo à mim foi designado, sentado sozinho em minha cama maltrapilha, aguardando o vil carcereiro vir me buscar para que se execute a sentença à qual fui condenado pelos servos de satã.

Sou um homem de Deus, um instrumento de sua vontade. Todos que se levantam contra mim, estarão se levantando contra nosso criador. Sei que minha condenação injusta é Deus colocando meu amor à prova, assim como já fizera antes com Jó, Abraão e muitos outros. O pai submete seus mais amados e leais filhos às provas de fogo a fim de testar até onde vai nossa fé e lhes garanto que a minha é incomensurável.

É isso, só pode ser isso! Antes de me conceder a eternidade no paraíso, terei que passar por mais esse martírio. Sinto como se todos os meus ossos estivessem quebrados. Meus joelhos ensangüentados fincados no solo, com as mãos apoiadas no chão eu sinto que toco em areia escaldante. Vagarosamente eu tento abrir os olhos, deixando que minha visão se acostume com esse intenso fulgor.

Surge em minha frente a imagem de um homem, um santo. Eu vejo um cristo crucificado. Em seus lábios um estranho sorriso sarcástico. Seu olhar me fuzila, penetra em minh’alma. Sinto-me nu, fraco, desprovido de qualquer defesa. Sinto-me sendo acusado, julgado e sentenciado. Nos olhos de cristo, um tribunal castigadoramente silente.

- Qual é meu crime? ...Meu pecado? ...Pelo o que estou sendo julgado?

Ele nada diz. Minhas perguntas não foram ouvidas. Cristo continua silenciosamente me fitando nos olhos. Fui eleito rei. Coroado, uma coroa de espinhos em meu crânio fora cravada. O sangue se mistura ao suor escorrendo por minha face. Sinto que meu cérebro vai explodir. Milhões de sinos batem às doze horas diurnas dentro de minha cabeça. Algo ensurdecedor, aterrorizante.

Pensei em correr... Eu corri... Pensei em fugir, me esconder... Eu fugi.

Corri... Suei... Cansei... Sangrei...

Quanto mais eu corro, me distancio, mais percebo que estou no meio do mais absoluto nada. Até onde meus olhos alcançam tudo que vejo é areia e mais areia, por todos os lados apenas um branco e escaldante manto cobrindo toda a terra. E o sol quase que tocando o solo num beijo tão belo quanto torturante. Com as pernas cambaleando, eu caio, e de novo me vejo de joelhos, aos pés de cristo crucificado. Como se tivesse percorrido centenas de metros sem sair do lugar. Ele ainda sorri; macabro, perverso. Uma dor insuportável começa a invadir meu corpo. Sinto como se minha carne estivesse sendo rasgada, atravessada por um instrumento letal. Minhas costelas bruscamente perfuradas. Sinto como se uma pontiaguda lança penetrasse o meu ser. Quase desfalecido.

Eu chorei... Eu clamei... Eu orei...

Dessa vez minhas preces foram ouvidas, respondidas. Como resposta todos meus pecados foram-me demonstrados. Pecados que até então julguei não possuir. Cadáveres surgiram por todos os lados, brotavam da terra ao meu redor. Vi-me cercado por um nefasto jardim humano. Tantos sorrisos apagados, tantos sonhos encerrados, tantas vidas que eu tirei.

Cristo ainda sorri... Malicioso... Sarcástico... Irônico...

Ri da própria dor, agora refletida em meu corpo...

- Matei por ti, senhor... Matei por amor à ti...

Ouço uma voz sofrida. Cristo fala em minha mente, enquanto à minha frente seus lábios ainda se mantinham estáticos em debochado sorriso.

-Matas-te por mim? Eu morri por você... E por amor á mim o que fizeste? ...Matas-te?

Os cadáveres à meu redor começam a ganhar vida. Seus corpos ainda mantêm o horrendo estado de putrefação. Levantam, cercam-me, envolvem-me em um circulo humano, tal qual fazíamos em nossas reuniões. Tal qual fizemos ao redor de cada uma dessas pessoas agora sem vida quando tentaram deixar nossa amada “igreja do cordeiro de Deus”. Foram submetidas à expiação de sangue como manda minha doutrina. Só assim herdariam o reino de Deus na terra.

- Foi por ti, senhor...

Os mortos, zumbis, sacaram adagas. Pouco a pouco o circulo funesto foi se fechando sobre mim. Senti meu corpo sendo perfurado dezenas de vezes por lâminas frias. Uma dor mortal toma conta de mim, mas apesar de sentir a morte, eu não morri. Eu pedi para morrer. Clamei ao pai que me tirasse a vida, implorei. Meu pedido não fora ouvido.

Ouço uma voz ao longe dizendo um simples “Amém”. Levanto aos poucos minha cabeça. A voz que pareceu vir de longe veio de um presbítero em pé ao meu lado, bem próximo de mim. Olho ao meu redor, não vejo mais os cadáveres, nem mesmo cristo. Vejo apenas dezenas de pessoas sentadas em poltronas à minha frente. Seus olhares são de ódio e satisfação. Eu os reconheço, cada um deles, são parentes dos irmãos que tiveram a vida tirada por mim, os mesmo que me cercavam à poucos minutos. Aguardam ansiosos o momento em que o meu algoz levantará a alavanca eletrificando a cadeira donde estou sentado. Não estou com meus sentidos normais, mas eu sinto o ódio que exala dessa perversa platéia.

O momento chegou. A alavanca foi suspensa. Em segundos meu corpo é eletrificado, meu cérebro frita. Minha vida deixa meu corpo transformado-o apenas em matéria. Um pedaço de carne torrada jogada à frente de um povo impiedoso. Vejo-me novamente aos pés de cristo. Agarrado pelos corpos pútridos. O filho do criador não mais sorri sarcasticamente. Agora cristo gargalha, sua maquiavélica risada ecoa por todos os lados. Um precipício se abre logo atrás de mim. Os cadáveres me arrastam em direção ao imenso buraco no solo. Eu reluto, em vão. Eles são muitos e quase não tenho forças. Sou levado. Afasto-me sem desviar os olhos de cristo. A gargalhada cessa, mas ele ainda sorri; irônico e sarcasticamente.

Todos os zumbis se jogam buraco negro adentro me levando junto deles arrastado pelos braços. Meu corpo cai. Imergindo de encontro à plena e absoluta treva. A caminho do fim. Séculos em queda para um destino ainda pior. Onde pela eternidade queimarei nas labaredas do inferno. Mas sei que a minha fé... Está apenas sendo testada

Um Conto de Márcio Renato Bordin.

Comentários 1 Comentário:

Tania Souza disse...

Esse conto é muito, causa um impacto no leitor.

7 de abril de 2011 às 19:59

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