Contágio Sobrenatural Oblíquo

terça-feira, março 1





“Nem sempre o brilho na escuridão é a salvação.” – Luciano Barreto.


Estou escrevendo este relato para que seja divulgado às autoridades o mais rápido possível.


Tudo começou quando eu recebi a convocação pelo correio. Havia passado em um concurso público para o governo estadual. E não precisava mais trabalhar como vigia noturno. Então, liguei para o Antônio e expliquei sobre o concurso. O Antônio era um amigo que trabalhava como vigia, ass
im como eu. Trabalhávamos numa escola particular infantil. Falei que não iria trabalhar naquela noite. O plantão era de 12h. Entrávamos às 20h e saímos às 8h. Ele ficou feliz e concordou comigo. Mesmo porque eu tinha um casamento para ir naquela noite. Como sempre fui um cara correto em minhas atitudes, ofereci ao amigo uma quantia em dinheiro para ele trabalhar por mim naquela noite. Ele aceitou. E creio que foi a pior decisão que tomou em sua vida.


Na semana seguinte eu tive de viajar para a capital do estado. De lá, eu depositei a quantia em sua conta. E um dia depois fiquei sabendo que ele havia ficado louco. Notícias desencontradas, por telefone, informavam que ele havia tido problemas com bandidos na noite em que trabalhou no meu lugar. Fora encontrado à noite gritando na rua, louco, desesperado. Soube que havia se tornado incompreensível nas palavras. Que precisava falar urgentemente comigo. Falava em um brilho, em doença, em recado. Falou até em fantasma.


Quando tive uma folga no processo de admissão do concurso, retornei a minha cidade natal e fui ao seu encontro num manicômio.


Ao chegar ao quarto, vi meu amigo preso a uma cama velha. O lençol estava sujo e o cobria até os joelhos. O quarto era poeirento. Havia uma manta marrom em cima da cama. Um cheiro repugnante tocou minhas narinas e quando vi a poça de vômito no chão, me empertiguei ainda mais. Ele estava com os olhos fechados. Eu o olhei por dois ou três segundos. Foi quando ele, ainda com os olhos fechados, relatou:


— Tenho um recado para você.

Eu me assombrei com aquela frase. Perguntei-me que recado ele tinha para mim, afinal estava internado há alguns dias naquele hospital para loucos. Mas não quis contrariá-lo e inquiri de quem era o recado.

— Oh. Você vai saber. Juro por Deus que você vai saber – lembro-me que ele havia levantado o pescoço e me fitava com os olhos de um insano. Parecia querer acertar contas passadas comigo. A barba por fazer. Os cabelos desgrenhados. Meu amigo estava preso à cama por largas tiras de afixação de doentes.


— Certo Antônio, conte. Estou ouvindo.

— Sente-se – o acamado riu lustrosamente de mim. As grossas fitas que o seguravam na cama denotavam o perigo que era aquele homem solto. Ele sempre fora um homem calmo. Mas agora estava desorientado.

— Bom... ele esteve lá. – Arregalei os olhos como se conhecesse “ele” há muito tempo.


— Acredita que ele esteve lá, Agrísio? – Ele me perguntou com uma voz gutural e com os olhos fixos nos meus. Vi ódio em seus olhos. Tristeza. Remorso. Somente reparei em sentimentos ruins no rosto daquele homem desassossegado.


Eu fiquei sem resposta, destarte soltei um mero “prossiga, Antônio”.


— Prossigo – ele fez um gesto vago com a mão direita, pois a esquerda estava encoberta pela manta marrom. — Aquele plantão foi horrível, Agrísio. Acredite em mim. Foi horrível. – Meu amigo estava estranho. Falava rápido e baixo, como se tentasse impedir que alguém o escutasse. Nunca fora assim. Então eu o acalmei, sem querer, ao dizer:


— Seja o que for. Eu resolvo, Antônio.


Ele suspirou em alívio e continuou: — Certo. O primeiro contato se deu quando fui pegar uma cadeira para me sentar. Havia entrado na sala de recepção, que era a única que ficava aberta para os vigias do turno da noite. Estava dentro do escritório – já com a cadeira nas mãos – quando vi uma nódoa amarelada passar pela porta da recepção como um flash medonho, na galeria, e seguir no meio do negrume. Não pude ver realmente o que era. A luz da galeria estava apagada. Pousei a cadeira lentamente no chão, puxei um canivete que portava, ejetei a lâmina e comecei a procurar. Quer saber? Eu vou confessar algo para você – os olhos de Antônio estavam agora repletos de lágrimas que verteram no meio de seu discurso – eu nunca gostei de trabalhar lá. Tinha medo e agora eu tenho pavor. Nunca mais eu volto para aquele lugar. Nunca, nunca mesmo. Nem se eu quisesse, eu conseguiria também. – Vi que ele estava se desesperando outra vez e falei que ele nunca mais iria voltar lá, a não ser se quisesse. E se precisasse eu faria isso para ele. Ao dizer isso, meu amigo arqueou as sobrancelhas e gargalhou demoradamente. Eu respirei fundo para não deixar me levar pela sua provocação. Afinal, para todos, ele estava doente, inclusive para mim. Pensei em chamar a enfermeira, mas prontamente desisti.


— Continue, amigo.

— Hum... deixe-me ver. Eu estava na galeria. Todas as portas já estavam fechadas. Estava empunhando o canivete. Tentei acender as luzes do corredor, mas a luz estava estranha. Como se tivesse algum fio quebrado. Ficou emitindo estalidos e piscava intermitentemente. Eu pisava lentamente para não fazer barulho. Então escutei uma respiração dentro de uma das salas. Detive-me, com os ouvidos à porta, a fim de escutar o som. E escutei. Dei dois passos para trás e meti o pé na porta, arrombando-a. A luz do corredor acendeu-se por completo com a batida da porta e iluminou toda a galeria. Um facho de luz – delineado pela porta – apareceu no chão da sala iluminando os pés de algumas carteiras escolares. E eu escutei um grito de horror enquanto vi algo se arrastando para a parte onde havia trevas naquele recinto. – Antônio começou a suar frio nessa parte da conversa. Eu me aproximei e falei baixinho: — Quer que eu chame a enfermeira?



Ele ergueu o pescoço e falou, com os olhos arregalados, causando pavor em mim:


— Não se atreva. Tenho um recado para lhe dar. – Aquele mesmo sorriso insano tornou a aparecer mostrando os dentes amarelados pelos antibióticos que lhe eram ministrados naquele lugar. Os olhos vidrados em mim. Eu concordei e fiquei a escutá-lo.


— Sabe o que mais? Paguei por ser um merda de um curioso. Por que não chamei a polícia naquele exato momento? Por que não saí correndo daquela escola? Por que não fechei a porta e fingi que nada estava acontecendo? São perguntas que ainda martelam a minha alma.


Deixei transparecer uma falsa fleuma. Estava preocupado com meu amigo. Mais com ele do que com a história. Ele continuou a falar.


Eu acendi a luz da sala. Oh, foi uma das piores coisas que fiz na minha vida. Vi um buraco na parede. No chão, o reboco da parede e tijolos. O buraco era largo, talvez um metro de diâmetro. Eu passaria por ele. Até me aproximei para olhar a outra sala, que é onde ele me levaria, mas estava escuro do lado de lá. Horrivelmente, algo se moveu dentro da parede. Rastejou do teto (parecia aquelas infiltrações nas paredes, que sempre existiram nas salas, mas era maior e se movia) e chegou perto do orifício, na parede. Pude ver a poeira e alguns entulhos caindo. Pude ver, também, um fulgor amarelado contrastando com o alaranjado dos tijolos. A qualquer movimento os entulhos caíam. Então o desconhecido se comunicou comigo. E sabe o que ele falou?


Respondi que não, um pouco impressionado.


Ele ficou a olhar a manta enrolada em sua mão esquerda por alguns segundos e em seguida riu baixinho, como se o que fosse falar iria me assustar. E, realmente, me assustou.


— Falou seu nome. Eu lembro. Falou bem lento e como se perguntasse “Agrísio?” – ele imitou como uma voz rouquenha. — Porém eu o ignorei. Outro erro que cometi naquela noite. Só falei que iria pegá-lo. E acho que ele reconheceu que eu não era você, pela voz. Assim ele tornou a subir pela parede, rastejando em seu interior. Repentinamente, a lâmpada tremeu. Eu vi que ela balançou. Quando percebi o que acontecia, a criatura já havia puxado a fiação e apagado a luz. Então voltei para o facho de luz que vinha da galeria e tocava uma parte da escuridão naquela sala. Eu estava um pouco distraído olhando para o facho de luz quando vi, em um movimento rápido, algo fosforescente esgueirar-se, buraco adentro. Nesse momento eu passei a ter medo. Mas não era o medo que sempre tive ao trabalhar ali, aquilo era receio perto do que eu estava sentido. Eu tive pânico. O pior sucedeu-se quando a coisa olhou para mim. Era um rosto inumano numa forma vaporosa brilhante. Mas tinha olhos. Olhos ágeis, perscrutadores e maus. Enquanto aquilo olhava para mim, eu não pude me mexer. Lembro-me que tentei ameaçá-lo com o canivete, mas eu estava estático. Alguma força me paralisou instantaneamente. Eu lutei muito. Naquele momento, eu me decidira a sair correndo e a gritar aos quatro ventos por ajuda, contudo, estava paralisado. A besta fechou a porta. Tudo bem que ela não foi lá fechar com as próprias mãos, porém enfiou o braço brumoso pelo buraco e fez um gesto que eu não soube identificar com a ponta do braço, porque aquilo não era mão. Era apenas uma ponta de braço transparente e de cor amarelo-brilhante. Quando a porta fechou, a escuridão me engoliu. Destarte, a coisa que brilhava no escuro vazou o buraco em minha direção. O brilho fosforescente iluminou a sala de aula. As carteiras escolares ficaram num matiz amarelado. A entidade movia-se lentamente até mim. Era um estado translúcido amarelado que se movia. Eu tentei correr, Agrísio. Tentei prorromper os portões da escola e sair. Mas não pude. Ela me segurou. Enquanto eu pensava em uma maneira de salvar-me, escutei uma voz, como se estivesse vindo de uma boca frouxa, falando lentamente: “Ache o Agrísio e lhe dê um recado: Meu alvo era ele. Apenas contamine-o. Apenas toque-o.”. O assombro tocou meu ombro e eu consegui sair correndo. Abri a porta e corri para fora. Gritei por toda a vizinhança. Em seguida uma patrulha me deteve e levou-me à delegacia. Expliquei tudo a eles, mas acharam que eu estava louco. E aqui estou. Internado.


Lembro-me que a noite havia chegado há pouco. O quarto estava um tanto escuro. Eu me levantei, falando que iria acender a luz. Mas ele gritou. Eu, depois de um ressalto, falei que, se ele achava melhor assim, eu não acenderia. Foi quando ele argumentou:


— Não vai doer. Vai levar um ou dois dias para aparecer. Entretanto, eu tenho que dar o recado. Caso contrário será pior para mim. Será pior para a minha família. – sussurrou o acamado.


Em seguida ele desenrolou a mão esquerda da manta marrom e mostrou-a para mim. E pasmem, senhores. Ela brilhava. Um brilho fosforescente que contornava toda a extensão da mão e que alumiou prontamente o quarto do hospital para loucos. Foi nesse momento que não mais julguei meu amigo louco. Foi nesse momento que minhas pernas tremeram e meu estômago se revolveu de horror. Foi nesse momento que eu quis correr, mas não pude. Aquele brilho me estagnou o corpo. Parecia que eu havia criado raízes no chão daquele quarto. Já estava com medo. E ele agigantou-se quando vi Antônio romper as tiras que o detinham na cama e vir em minha direção dizendo:


— Vê? Isto que deveria estar no seu corpo. E não no meu. Vê? Olhe bem. Eu deixo você ir embora se quiser. Vá! Ah ah ah! Não pode, não é? Algo o impede? É... algo o impede! E sabe o que é? É isto. É este brilho - seu braço balançando aquela mão de cor amarelada que o obliterava. Fechei os olhos enquanto ele se aproximava, porém o fulgor demoníaco rompia a pele que revestia meus globos oculares e chegava até meu cérebro, forçando-me a ouvir uma voz estranha. Uma voz abafada. Que dizia algo sobre contaminação, minha vez e difundir a moléstia. Não era a voz de meu amigo. Ao ser tocado no crânio (senti a palma da mão de Antônio em minha cabeça), enfim, eu consegui sair da sala.


Vi na televisão que sou procurado pela polícia em função do assassinato de Antônio. Dizem que escondi seu corpo. Mas ele foi extinto pelo fulgor morrediço. Se vocês pensam que eu matei Antônio, saibam que não o fiz. A coisa o contaminou com o brilho da morte e sua função era me contaminar. Creio que deveria ter sido tudo comigo, porém não pude trabalhar naquela noite. Não sei de onde ou porque surgiu o portador deste brilho contagioso e aterrador, mas a contaminação era para mim. Eu que deveria ter morrido há três dias. Contudo, o recado foi dado e não será obedecido. Meu pé esquerdo não dói, entretanto ostenta o resplandecer âmbar que matou Antônio. Vou ficar aqui até ser eterizado por esta moléstia apocalíptica. E não vou contaminar ninguém.



Um conto de: Luciano Barreto

Comentários 6 Comentários:

Pedro Moreno disse...

Interessante. Gostei da forma como as palavras foram colocadas. Até os vigias tem um português impecável.

28 de agosto de 2009 às 07:41
Unknown disse...

É impossível não ser contaminado sobrenaturalmente pela obliquidade deliciosamente contagiante desta narrativa! Luciano e sua imane capacidade em criar universos fantásticos!

31 de agosto de 2009 às 05:43
Tânia Souza disse...

Este é, seguramente, um dos melhores contos que li, parabéns Luciano! Sou fã ^^

31 de agosto de 2009 às 15:41
Luciano Barreto disse...

Quero agradecer ao Pedro, Victor e Tânia. Os comentários foram motivadores. Escrevi esse conto quando estava começando a trilhar essa fenomenal senda que é o conto de terror/horror/fantasia. Pedro, te convido a participar do fórum da Câmara dos Tormentos. Você pode acessá-lo em www.forumdacamara.forumeiros.com .
Grande abraço aos amigos.

2 de setembro de 2009 às 19:15
Heidi Gisele Borges disse...

Oi, Márcio, indiquei seu blog para um selo:

http://mundodefantas.blogspot.com/2009/09/mundo-de-fantas-recebe-mais-uma.html

10 de setembro de 2009 às 17:25
Tânia Souza disse...

Tem um selo para o Dezembro 13 no meu blog ^^

23 de setembro de 2009 às 05:25

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