0

A Dama do Rio




O casco da embarcação elevava-se no ar e caía com violência sobre as águas escuras do rio. A tempestade pegara a todos de surpresa, em apenas alguns minutos o nível das águas havia subido como há muito não era visto em toda a região. Os pescadores agarravam-se como podiam nas cordas e ganchos fincados na madeira envelhecida que revestia toda a nave. Àquela altura já suscitavam dúvidas se haveria mais água vinda do céu, correndo pelo leito, ou dentro do próprio barco. Embora não houvesse qualquer vestígio de rochas naquele percurso, um choque violento e repentino atingiu a parte inferior da embarcação despedaçando por completo toda a sua estrutura. No exato instante em que via os companheiros voando pelos ares, o comandante pôde notar um estranho brilho submerso refletido pelos lampiões que caíam na água.

Ele sentia seu corpo ser tragado pelas profundezas sem que conseguisse reagir, por mais que fizesse força. Lutava para evitar que as impiedosas águas preenchessem seus pulmões. Não conseguia enxergar quase nada, tudo estava turvo e escuro, mas ainda assim, podia jurar ter visto vários de seus amigos serem enlaçados por algo brilhante enquanto travavam uma violenta luta pela vida. O comandante buscava fazer jus à sua reputação, mas nem mesmo com um poder sobrenatural julgava ser capaz de resistir ao poder da natureza. Quase perdendo os sentidos, sentiu seu corpo ser elevado por algo que surgia das profundezas, já não sabia se aquilo tudo era realidade, ou se não passava de um delírio causado pela rigidez da situação.

O ar entrou por suas narinas de forma violenta, chegava a queimar-lhe as mucosas, o homem estava totalmente entregue, não tinha o menor domínio sobre si mesmo. Seus olhos reviravam a procura de algo que lhes confortassem, mas tudo o que viam era o seu instrumento de trabalho sendo arrastado, aos pedaços, pelos braços dominantes do rio, e as pesadas gotas que caíam do céu tomado pelas trevas. Percebia seu corpo ser levado como uma pluma sinuosa sobre o espelho d’água, não sabia como esse fato era possível, mas não insistia em tentar buscar uma explicação.

Seus músculos não tinham mais forças e sua mente logo desistiria de manter-se acesa, perder os sentidos seria questão de tempo, e assim aconteceu. Entorpecido, embarcou numa viagem escura, onde não estava no comando, não sabia onde as curvas traiçoeiras poderiam levar.

O pescador foi encontrado numa das margens na manhã seguinte. Ele estava desacordado, e assim permaneceria, em um estado profundo de letargia, fechado para a realidade, mas vivendo internamente num mundo de sonhos desconexos e sem sentido, de onde somente sua força interna poderia tirá-lo.

As águas calmas não davam sinais de serem as mesmas tomadas pela fúria incessante da noite anterior. Alguns ribeirinhos arrastavam uma rede pelo rio em busca de alimento, enquanto crianças corriam por uma das margens. Cena normal e corriqueira se não fossem os murmurinhos no vilarejo por conta do acidente fatal com o pesqueiro. Apesar do leito barrento, a farta luminosidade do dia aberto permitia uma razoável visibilidade aos homens, no entanto, naquele dia, talvez eles não desejassem enxergar tanto.

O mais franzino deles foi o que viu primeiro, um rastro sinuoso nas águas intensificado por um brilho que aumentava com o contato dos raios do sol. O reflexo feriu-lhe os olhos, fazendo com que largasse o apoio da rede e levasse as mãos ao rosto, o gesto fora acompanhado por um grito aterrador. Os demais demoraram a entender o que acontecia com o companheiro, só perceberam que havia algo errado quando o próprio erro em pessoa surgiu da parte mais funda do rio, enlaçando o corpo frágil do rapaz que gritava. A voz do pobre homem foi calada. Seu corpo desapareceu por completo do campo de visão dos amigos, em seu lugar, surgiu uma mancha escura e perturbadora.

O pânico tomou conta do resto do grupo, com saltos e de forma atabalhoada, os pescadores tentavam escapar da ameaça, mas o que se movia ali era detentor de muito mais desenvoltura, e não fora difícil para ele subjugar um a um da forma que quis. Os corpos eram arremessados pelo ar e chocavam-se violentamente contra as águas, para em seguida desaparecerem e ressurgirem em pedaços. O leito tornava-se rubro e agitado. As crianças pararam o que estavam fazendo e passaram, curiosas, a observar a estranha pescaria dos mais velhos.

Uma onda crescente em forma de delta seguia velozmente em direção a elas, a maioria correu, mas uma delas ficou. Estava praticamente hipnotizada pelo movimento incomum das águas. Os gritos e a correria dos pequenos chamaram a atenção de uma mulher que trançava palha dentro de casa. Pelo vão da janela, ela visualizou a menina parada na margem e uma seta nas águas que rumava em sua direção. Com a pressa envolvendo-lhe os pés, ela correu o máximo que pôde para alcançar a garota, não era preciso entender o que se passava para saber que aquela vida estava em risco.

A distância lhe fora favorável, um abraço urgente quebrou a hipnose da menina, mas ela ainda estava com os tornozelos no inferno e isso já seria o suficiente.

Os olhos da pequena presenciaram a cabeça de sua salvadora abandonar violentamente o corpo com uma só investida do desconhecido. Ela sabia que seria a próxima, no entanto, o ataque fatal de seu algoz fora repelido, e ela apenas acompanhou a boca escancarada da criatura desaparecendo nas águas manchadas. O corpo decapitado fora levado junto, agarrado às armas exibidas e que estavam prontas para lhe fazer mal. Suas lágrimas diluíram-se no rio, levando inocência e pureza àquele lugar maldito.

Quase no mesmo instante, no pequeno hospital da cidade, o súbito despertar do comandante do barco naufragado surpreendia o solitário médico local, o qual, prudentemente, já tratava da transferência do enfermo para as instalações da capital. No entanto, algo fazia brotar um sentimento de preocupação no peito do doutor. Embora o homem demonstrasse sinais claros de recuperação, seu olhar perturbadoramente vidrado insistia em dizer o contrário. Inutilmente, o médico tentou manter o pescador sob seus cuidados, mas a determinação do homem parecia transmutar-se em força, e, por conta disso, tentar mantê-lo internado tornou-se algo impossível. Uma vez livre, o velho comandante ganhou as ruas de barro do vilarejo.

Enquanto caminhava perdido em pensamentos, o pescador permanecia alheio à movimentação que surgia junto a margem do rio. Na verdade, lhe faltava um raciocínio coerente, parecia que sua memória recente havia sido apagada. Ainda assim, ele sabia que algo não estava certo, embora ele estivesse distante das pessoas que se aglomeravam diante das águas, ele compartilhava, mesmo que de modo inconsciente, das mesmas aflições que os atormentavam. Ele e os ribeirinhos tinham plena convicção de que algo fora da normalidade habitava aquele espaço submerso.

O povo estava horrorizado com o relato da pobre garotinha. Por obra de um verdadeiro milagre, ela conseguira ter um destino diferente de todos aqueles que haviam sido tocados pelas águas do rio naquela manhã.

De seus lábios brotavam os contornos de uma criatura inacreditável, inconcebível até mesmo para uma região tão suscetível ao extraordinário. Os líderes locais não conseguiam se conter diante da possibilidade de algo tão demoníaco macular o que lhes era sagrado, o local de onde colhiam o sustento das famílias.

Não tardou para que os barcos de diferentes tamanhos e cores ocupassem cada metro do espelho do rio. Arpões e flechas de bambu riscavam o ar e espirravam água mediante o menor movimento suspeito no leito turvo.

Eles subiram e desceram o curso d’água por várias vezes, durante todo o dia, sem que conseguissem encontrar qualquer sinal da criatura que ofendia a própria natureza simplesmente por existir. Ao cair da noite, com os barcos atracados, os homens voltavam à terra com o peso da frustração sobre os ombros.

Esperando a comitiva, no centro do vilarejo, estava a mais velha das moradoras. Ela poderia ser considerada uma local porque habitava as cercanias do pequeno povoado, embora não fixasse moradia entre os demais. Ela descendia dos índios, circulava pela mata e raramente era vista entre os habitantes, apesar de que todos tinham plena consciência a respeito da presença dos seus olhos vigilantes sobre a região. Ela impunha muito respeito, todos faziam questão de ouvir o que ela tinha a dizer, mesmo porque, dificilmente o som de sua voz se fazia ecoar...

As palavras proferidas pelo timbre rouco saíram arrastadas, soando quase como uma lamento. Elas tratavam de um espírito maligno, perverso em essência, que não se furtava em fazer valer do corpo que ostentava para disseminar o mal e causar dor, tanto física quanto emocional. A criatura se arrastava pela floresta imitando o curso dos rios, embora os antigos dissessem que eram os rios que assumiam sua forma.

Uma vez instalada numa área, o ser não descansaria até arruinar a alma de cada um dos seus habitantes, pois ele próprio não tinha sossego por odiar a própria forma e, por conta disso, invejar as linhas daqueles que desejava consumir.

Acuada, a criatura se tornava furtiva, e ostentar felicidade seria a melhor maneira de atraí-la. Assim, no alto de sua sabedoria, a velha índia ordenava que se fizesse um grande festival, uma homenagem à fartura das águas.

E assim foi feito. Todos os moradores e, até mesmo, representantes do povoado vizinho juntaram-se na margem do rio, ao redor do calor de uma grande fogueira, a lua cheia emprestava seu esplendor à comemoração. Mesmo temerosos, os ribeirinhos festejavam. Toda a angústia que lhes consumia ficava restrita ao interior de suas almas. Nem mesmo uma simples ponta de aflição poderia transparecer, caso contrário, a fera das águas não surgiria.

O velho pescador não conseguia se juntar aos demais, seu trauma parecia demasiadamente profundo para que pudesse simular alegria. Ele conseguia se lembrar de estar entre os braços da morte, do terror estampado no rosto de cada um dos seus companheiros. Porém, a lembrança da salvação era tão turva quanto as águas barrentas do rio. Ele tentava, mas só lembrava de estar flutuando antes de perder os sentidos...

Apesar da mente nublada, ele foi o primeiro a perceber as estranhas ondulações na escuridão das águas. Uma garota, não pertencente ao povoado, provavelmente, pois suas feições não foram de imediato reconhecidas pelo pescador, dançava inadvertidamente junto à margem. A jovem, que demonstrara incontido entusiasmo durante toda a noite, não fazia a menor idéia do perigo crescente às suas costas. Antevendo a situação, o homem iniciou uma desabalada carreira rumo ao terreno lodoso. Entretanto, seus movimentos foram replicados em intensidade pelos golpes das águas, os quais, de súbito tornaram-se uma imensa parede em forma de onda. A música cessou, a dança foi interrompida, a atenção de todos estava voltada para o rio, mas ninguém conseguiu se mover quando a imensa figura surgiu em meio ao turbilhão de fúria.

A criatura de escamas negras e reluzentes projetou-se com incomparável velocidade sobre a mulher, o corpo frágil foi rapidamente envolvido pelos contornos esguios da fera. O pescador, o único a esboçar um mínimo de reação diante dos fatos, tomou a espingarda de um dos estáticos moradores, chegando a derrubá-lo com o ato. O homem, decidido a por um fim na existência da besta, enlaçou com convicção o cano duplo da arma e fez mira. A boca escancarada da criatura demonstrava plena capacidade para engolir a cabeça da garota com uma só investida, e tentou, de fato, fazê-lo. Mas o chumbo rompeu o ar no instante crucial, acertando, em cheio, o vão preenchido pelos aguçados dentes.

Imediatamente, a pressão exercida pelo corpo cilíndrico foi atenuada de tal forma que a garota conseguiu escapar. Mas o demônio ainda resistia. O movimento de algumas escamas ainda era perceptível. Então, o pescador se aproximou do assassino de seus companheiros. “Na cabeça, acerte uma lâmina na cabeça!” Gritava a mulher, em evidente desespero. Atendendo aos apelos, ele desembainhou sua velha, porém afiada, faca de pesca. A cabeça da fera balançava perigosamente, embora de modo involuntário. O homem buscou a lembrança dos amigos sendo arrastados para o fundo das águas, o desejo de vingança lhe preencheu de força e determinação. Esperando o momento exato, ele golpeou com certeza de sucesso a área localizada um pouco atrás da monstruosa cabeça. De imediato a criatura tombou. Do ferimento adornado pela lâmina, um líquido espesso e negro, semelhante ao que era expelido pela boca da fera, ponto atingido pelo chumbo, começou a verter. No entanto, poucos segundos se passaram para que a tonalidade mudasse de cor. Nos dois pontos, o vermelho intenso passou a dominar. O inimigo fora finalmente vencido.

Os ribeirinhos explodiram em gritos de comemoração. A jovem parecia a mais entusiasmada, e, em aparente sinal de gratidão, tomou seu salvador em um abraço. Sem dizer uma só palavra, ela encostou seu rosto na face cansada do pescador. “Não!” Gritou a velha índia, surgindo de um ponto desconhecido. Sua voz não soava como um sussurro desta vez, pelo contrario, era firme e perfeitamente compreensível. Mas, o comandante da embarcação despedaçada não conseguiu ouvi-la. Seus olhos estavam vidrados numa imagem que o fez lembrar de tudo. Entorpecido, ele sentiu a língua bifurcada e áspera da mulher deslizando, de forma sinuosa, sobre seu rosto. Não havia mais névoa em sua mente, tudo estava claro. Fora uma gigantesca serpente negra que o livrara da morte certa no rio, uma criatura tão semelhante a que estava estirada no chão, com o sangue a esvair dos ferimentos por ele causados.

A besta assassina não era aquela. A face da morte era alva como a lua no céu, emitia um brilho prateado enquanto matava, cintilava enquanto devorava a carne humana. Ele tinha visto, jurava que tinha visto, os olhos malditos do demônio enquanto flutuava nas águas sob a proteção da criatura de negras escamas. O vazio que ele presenciou naqueles olhos estava ali, diante dele, refletido no semblante frio da mulher que o apertava cada vez mais com um abraço firme.

A índia tentava invocar sua antiga força, mas seu corpo já não respondia aos comandos com a mesma desenvoltura de outrora. A coragem dos moradores parecia diluir-se diante da incapacidade demonstrada por sua inspiradora. O prisioneiro urrava de dor. Ele sentia sua caixa torácica sendo esmagada pela força da mulher, o ar começava a lhe faltar aos pulmões. Quando achava que a morte era inevitável, ela o soltou. Mas seu horror estava apenas começando. Com incrível habilidade, a jovem se livrou das vestimentas, e com as mãos unidas junto ao esterno, começou a rasgar a própria pele. De dentro do seu corpo surgiu o revestimento pálido e reluzente de uma cobra, a qual, de maneira inexplicável, parecia crescer diante dos incrédulos moradores.

Como se refeitos de um transe, os locais partiram em direção a ela, alguns recolhiam paus e pedras como armas, outros se municiavam com rifles e facas. No entanto, já não havia tempo para retaliação, a enorme serpente branca ganhou as águas escuras com extrema perícia, mas não sem antes arrastar o corpo triturado, e pronto para ser engolido, do pobre pescador. Tiros foram disparados a esmo. As águas se tornaram indomáveis por alguns instantes, mas logo foram tocadas pela placidez usual.

Vencidos, enganados e humilhados, os ribeirinhos tentavam encontrar forças. As palavras da velha índia ecoavam com maior intensidade na cabeça de cada um deles; o demônio não descansaria enquanto não consumisse a existência de cada habitante do local por ele escolhido para viver. O que eles ainda não compreendiam, era que a criatura não agia de modo desordenado, ela não gostava de deixar um trabalho inacabado. Assim, quando jatos d’água foram lançados ao ar com violência, espalhando o pânico entre todos; um brilho metálico arrastou uma garotinha para as profundezas do rio. Desta forma, a certeza de que ninguém poderia sobreviver começou a brotar no coração daquelas pessoas.




* Texto inspirado na Lenda Cobra Norato e Maria Caninana. Conheça o Folclore Nacional, você vai se surpreender.


Um conto de Flávio de Souza
2

As Cinzas da Quarta-feira




I

        Ana despertou com um sobressalto. O baque seco das baquetas contra a pele esticada dos repiques parecia ecoar diretamente em seu cérebro, era como se sua cabeça fosse um dos instrumentos atacados com ferocidade pelo espírito contagiante da época. Uma fisgada lancinante apertava sua nuca, mas a dor não se fixava apenas nesse ponto, ela se espalhava, dominante, por cada articulação e músculo.
        Com um redemoinho afligindo-lhe a mente, e com um torpor se espalhando como uma onda pelo corpo, a capacidade de compreensão acerca da situação ao seu redor ficava muito comprometida. Ela iniciou uma contagem mental, enquanto respirava pausadamente. Assim, aos poucos, a realidade começou a se tornar mais nítida. Mas, diferentemente do que se poderia imaginar, a clareza não lhe trouxe o conforto esperado, pelo contrário, a nova percepção chegou acompanhada de um incômodo tão ou mais intenso do que as alfinetadas já presentes. Ana estava presa. Irremediavelmente encarcerada na própria casa.
        O som estridente das marchinhas, o entusiasmo em forma de gargalhadas, a fúria dos tambores. Não havia qualquer dúvida, o calor do bloco arrastava uma multidão pelas ruas. Ela conhecia aquela energia, durante toda a sua existência vivenciara ano após ano cada fagulha do reinado de Momo. Ana respirava carnaval. Seu coração palpitava no ritmo dos tamborins. Não havia no mundo algo que pudesse preenchê-la tão intensamente quanto a perspectiva que cercava os dias de folia. Pelo menos era isso o que ela pensava até conhecer Ezequiel, nesse mesmo período, há um ano.

II

Naquela noite, Ana rodopiava no centro da quadra de ensaios. O pavilhão de três cores, pelo qual ela nutria incondicional devoção, tremulava com intensidade sob seu poder. A garota empunhava o mastro da bandeira como se tivesse a capacidade de tornar em vida o tecido inanimado.
        Ana era apenas a segunda porta-bandeira da agremiação, mas, naquele momento, seu desempenho a tornava o centro das atenções, o motivo de todos os olhares. Foi nessa amálgama de rostos que seus olhos de ébano cruzaram com os traços robustos, porém cativantes, do desconhecido que mudaria para sempre sua vida.
        O vigor dos seus braços pareceu fraquejar. O gingado das pernas travou em descompasso. Se estivesse em plena evolução sob as luzes do espetáculo, certamente teria comprometido o alcance da nota máxima.
A partir dali, Ana e Ezequiel não mais se separaram. O casamento tornou-se a conseqüência natural de um magnetismo tão avassalador.
Com a alegria plena no coração, a porta-bandeira brilhou intensamente na avenida. A leveza da alma a conduziu em movimentos perfeitos, a felicidade transbordava pelos poros. A promoção ao primeiro posto, promessa para o carnaval seguinte, estava mais do que garantida.

III

Dizem que o ano só começa, de fato, depois do carnaval, mas para Ana e Ezequiel, uma nova vida havia começado. Porém, o castelo começou a ruir quando o rapaz, por conta de novas convicções, passou a rejeitar e, até mesmo, condenar conceitos e atividades que faziam parte do dia-a-dia do casal.
        - Entenda, Ana. Os feitiços e as tentações da esfera mundana deturpam e corrompem a grandeza da alma humana.
        - Eu entendo, meu amor. Mas precisamos ser mais flexíveis, pois nem tudo pode ser tratado a ferro e fogo.
        E, realmente, ela entendia os motivos do marido: a decepção com as futilidades, o egoísmo cru perante o próximo, ele chegara a um limite instransponível. Caso não transformasse a própria existência, a espiritualidade, certamente entraria em colapso. Mas, ao mesmo tempo, Ana se sentia pressionada pela lâmina afiada do conflito interior. Não era fácil abrir mão dos sonhos, principalmente quando eles eram arrancados do seu peito por alguém que tanto amava.
        - Ferro e fogo, você diz. Com a rigidez do ferro, devemos dobrar os joelhos perante a força maior que move o universo, enquanto a grandeza do fogo traz a purificação do espírito. Entenda, Ana. Não há salvação sem esforço. Não há recompensa sem sacrifício. Tudo aquilo de que abrimos mão hoje, retornará em dobro quando o mundo mudar, quando a carne se tornar cinza e a alma se elevar.
        Não havia maneira de contornar a situação. Ezequiel parecia irredutível em seu novo modo de agir e pensar. De nada adiantava argumentar, apelando para o fato de que ele já a conhecera assim, ou que o ambiente e os hábitos eram comuns aos dois. A ela só restava se rebelar contra a imposição de algo que não lhe pertencia em essência, ou aceitar tudo em nome da nobreza do sentimento que nutria. Ana escolheu o amor. E, resignada, resolveu mergulhar com a mente aberta nas possibilidades que se abriam em sua vida.
        A rotina mudou. Atos, vestes e comportamento se adaptaram. O brilho dos paetês foi enterrado na escuridão fria dos armários. No entanto, no percurso inglório dos longos meses, lágrimas tristes insistiam em rolar pela maciez do rosto miscigenado. Ana sofria em conformada mudez, mas, às vezes, até mesmo o silêncio pode alcançar quem lhe escute.

IV

        A garota olhava para a noite, ela gostava daqueles momentos de solidão, não que a companhia de Ezequiel lhe desagradasse, longe disso, mas estar naquele local, defronte para o vazio, era a única oportunidade em que podia pertencer a si mesma. Ela podia ouvir seus pensamentos, podia ouvir muito mais...
        No início, Ana não julgou a sonoridade trazida pela brisa morna como uma voz. Lembrava, sim, um sussurro, mas não algo que pudesse se originar de uma garganta humana. A perfeição que emanava em ondas superava facilmente qualquer nota, até mesmo as executadas pelos melhores tenores.
        Como era bom ouvir aquela melodia, como era bom ouvir seu nome proferido pela boca de um anjo...
        - Ana! Ana! Meu Deus, Ana! Saia daí! Saía daí!
        Revestido pelo desespero, Ezequiel gritava enlouquecido. Com a urgência nos pés, ele tentava vencer a distância até a janela. A mulher, em aparente transe, se esgueirava perigosamente pelo beiral. O contraste da voz do marido, como um samba atravessado, quebrou a cadência que conduzia o corpo esguio com a leveza das plumas. Ana despertou, e seu tronco girou como num bailado improvável. A queda parecia certa, mas os braços providenciais enlaçaram-na no ar.
        - O demônio, Ana. O demônio estava em você. Ele quer fazer morada em seu coração. Não deixe que ele vença, Ana. Não deixe que ele vença.
        Ezequiel segurava a cabeça da mulher com as duas mãos. Ele a sacudia como se quisesse arrancar a força maligna com o poder dos gestos. Ana chorava, enquanto a saliva do marido espirrava em seu rosto e as palavras de ordem espancavam seus tímpanos.
        Os dois se abraçaram, o suor como argamassa. Ela, sem entender exatamente o que se passava. Ele, com a convicção revestida pela fé. Em comum apenas a certeza acerca de suas próprias verdades.

V

        Os dias seguintes foram terríveis para Ana. Por mais que ela tentasse manter a normalidade, o episódio da janela parecia conspirar contra sua vontade. Ezequiel, em toda e qualquer oportunidade, a utilizava como exemplo vivo do poder de persuasão do mal. E, para piorar, ela mesma passava a duvidar se não estaria sendo alvo da ação nefasta das trevas. Mas não era exatamente isso o que a incomodava. Ela perdia o sono por sentir falta daquela sensação, daquela voz que a fizera flutuar, como se estivesse em plena evolução na avenida, sob os aplausos da multidão.
        O carnaval se aproximava, e com ele a agitação no coração da porta-bandeira. Era impossível domar a ansiedade. Se ao longo dos meses a hesitação brincou com seus sentimentos, com a proximidade da desejada data, a chuva de chamadas na televisão, a agitação nas ruas, os preparativos de um modo geral, trataram de por uma libra a mais na balança. Ela estava decidida, perdera o posto de destaque na agremiação, mas não deixaria de cruzar a passarela, mesmo sob os protestos e os problemas que inevitavelmente surgiriam.
        Um sorriso espontâneo brotou em seus lábios, mas, com a mesma naturalidade com que surgiu, a expressão se desfez quando seus olhos encontraram a reprovação enigmática no semblante do marido. Ezequiel a conhecia bem. Ele entendia com perfeição as particularidades de sua alma. Não foi preciso que Ana dissesse uma só palavra, ele já sabia o que ela pretendia.
        - Como você pode pensar uma coisa dessas, Ana? Como? Essa é uma festa profana, uma exaltação ao demônio! Você não vai sair de casa. Vai ficar trancada pelos próximos quatro dias. Entenda, é para o seu próprio bem.
        - Não, Ezequiel, não é. É uma festa do povo, uma manifestação legítima. A maldade está no coração das pessoas, e eu não carrego nada de ruim em meu peito, posso lhe garantir. Algumas horas, meu marido, apenas algumas horas, não te peço mais nada.
        Com o coração partido, Ezequiel suspirou. O dorso de sua mão direita rasgou o ar encontrando o rosto delicado da garota.
        - É para o seu próprio bem. Daqui você não sai.
        Ana tentou se debater, mas contra os músculos do marido ela nada podia fazer. Inconformada, a mulher foi arrastada pelas escadas e jogada na cama. O estrondo da folha de madeira e o clique seco da maçaneta doeram muito mais do que a bofetada. Mas, o pior ainda estava por vir. Ela mal pôde acreditar quando viu Ezequiel, a pessoa que mais amava no mundo, irromper novamente pelo quarto. Ele trazia uma longa corrente nos braços, além de um par de cadeados. Ao exibi-los, sua voz soou muito mais fria do que o metal que ela logo experimentaria na pele.
        - É para o seu próprio bem, Ana. Aqui você estará segura. Estará livre das tentações. – Ele não se cansava de repetir, enquanto a preparava.
        Como uma serpente ardilosa, os elos abraçaram um dos esguios tornozelos da garota. Ela tentava se lembrar de algum verso que pudesse retratar o que sentia, mas não havia poesia capaz de traduzir tamanho sofrimento. Ao ver o marido se distanciar, Ana, num último esforço, tentou correr em sua direção. Mas o enlace apertado não a deixou ir muito longe, a liberdade limitada tratou de lembrá-la de sua existência. O corpo quis seguir, mas a perna não deixou. Durante a queda, os braços em movimento buscaram apoio numa das prateleiras fixadas à parede, mas o resultado obtido correspondeu ao vôo de um buquê de rosas plásticas, além do inevitável encontro entre a delicada cabeça e a cerâmica do jarro.
        Ana sentiu os lábios frios da escuridão beijando-lhe a face, o afago contrastou com o toque morno do filete rubro que escorria. O mundo girava ao seu redor. A porta já estava cerrada quando as pálpebras não suportaram a pressão do próprio peso...

VI

        Sua cabeça latejava. Lá fora, os tambores, chocalhos e tamborins atiçavam o canto desencontrado e o grito dos foliões. Já era noite, mas não uma noite qualquer, era carnaval. Demorou para que ela encaixasse o raciocínio, mas a certeza em sua perna e o sangue seco na testa não deixavam dúvidas: ela estava presa. Irremediavelmente encarcerada.
        Sentada no chão, Ana abraçava os joelhos na esperança de que a solução lhe oferecesse uma das mãos.
        “Ana... Ana...venha comigo...”
        Mesmo com toda a algazarra carnavalesca, a garota tinha a impressão de conseguir destacar a sonoridade familiar dentre o coro de inúmeras vozes. Não, não era lá de fora que vinha a voz. Ela lhe falava diretamente à cabeça. Como era doce aquele timbre...
        “Ana...eu sou a liberdade que você busca...venha comigo, vamos sair daqui...”
        - Onde você está? Onde você está?
        “Aqui, Ana. Sempre estive aqui. Venha comigo...venha comigo...”
        De alguma forma estranha, a voz insinuava a direção em que a garota deveria olhar. Tremendo dos pés à cabeça, ela tentava se esquecer da dor. Suavemente, Ana arqueou o corpo, deixando o rosto bem rente ao chão. Seus olhos buscavam o ponto específico, enquanto os dedos tentavam desobstruir o caminho bloqueado pela colcha. O alívio estava lá, envolto pelas sombras sob a cama. Ana sorriu...

VII

        Ezequiel tentava romper a barreira formada pelos foliões. Ele maldizia a si mesmo por um dia já ter sido um daqueles perdidos, um fraco sem orgulho próprio. Ao dobrar a esquina, mesmo irritado, foi impossível não notar a imagem que cruzou, numa fração de segundo, a brecha entre as cortinas, no quarto do andar superior de sua casa.
        O coração disparou. As pernas bambearam. Para enfrentar aquilo, ele precisaria bem mais do que a própria fé.     O homem saiu em disparada, empurrando os inúteis que se aglomeravam pelo caminho. Ele tinha a impressão de que todos gargalhavam dele, zombavam do seu desespero, mas não havia tempo a perder, precisava salvar sua esposa.
        Com a urgência a lhe chicotear, ele ganhou as dependências da garagem. Seus olhos dançavam de um lado para o outro, nada parecia servir a seus propósitos, até que vislumbrou um achado sob as sobras de caixas de papelão.
        De posse do que queria, Ezequiel chutou a porta e cruzou o corredor principal, mas antes de saltar de dois em dois os degraus da escadaria, ele ainda passou pela cozinha, talvez só tivesse uma chance, pensou.
        Chegando ao quarto, foi assaltado por uma visão muito mais aterradora do que jamais poderia supor. Sua esposa, sua amada Ana, estava sob o domínio de uma força nefasta. Uma estrutura de escamas negras e reluzentes parecia ter se apoderado do corpo da mulher. Dentes afiados mordiam-lhe a cabeça, asas abertas, como as de um imenso morcego, exibiam o domínio dos limites. Era o demônio, não havia como negar. E ele empunhava uma lança, cujos dentes aguçados mastigavam retalhos de pele humana.
        Ezequiel não se intimidou, mesmo diante de tamanho horror. A força de suas palavras expulsaria a maldita serpente do corpo da esposa. O demônio resistia. Ana parecia querer se comunicar, mas de sua boca não saia nada compreensível aos ouvidos do homem. Só havia o sibilar hediondo do idioma dos infernos.
        A besta era forte, muito forte, ela se negava a largar o corpo da mulher. Ezequiel caminhou em sua direção, mas o demônio avançou, tentando agarrá-lo. Não havia jeito, a carne mortal já estava comprometida, mas a alma ainda poderia ser salva.
        Com lágrimas escorrendo pelos sulcos do rosto, o homem atirou para longe o lacre do recipiente. Ele precisou de muita determinação para despejar o líquido sobre o corpo possuído. O demônio urrava por conta do contato úmido. Com a chama nas mãos, Ezequiel suspirou antes de atirar o palito.
        - A grandeza do fogo traz a purificação do espírito.
        As labaredas consumiram a mescla estrutural dos corpos unidos. Os guinchos de dor da criatura se espalhavam pelo ambiente, enquanto ela se debatia sem conseguir sair do lugar.
        - Quando a carne se tornar cinza, a alma se elevará.
 Ezequiel observava, extasiado, a vitória. A voz da criatura era horrenda...era bestial...era...era...familiar?
- Ana! Ana! Por Deus, Ana! O que eu fiz? O que eu fiz?
Não era um demônio diante dele. O que seus olhos nublados viram não passava de uma fantasia de lantejoulas reluzentes. Mesmo devorada pelo fogo, Ana não largou o mastro com a bandeira. Besta e lança ardiam em chamas. Seu delírio respondia pelo sonho inofensivo de uma amante do carnaval. Sua voz interior clamava para ser ouvida...

VIII

Ezequiel havia terminado de incinerar o corpo da esposa. Diante dele, não havia qualquer sinal de salvação, só havia dor e nada mais. Ele não nutria sonhos ou projetos, como Ana. A sua própria maneira, tudo o que ele sempre quis foi zelar pelo que achava certo, pelo bem da família. Família esta que estava, literalmente, reduzida a pó. Mas ele poderia fazer alguma coisa por ela, mesmo que de forma tardia.
A escola cruzava a avenida. E, entre a chuva de confetes e serpentinas, uma nuvem cinzenta encontrava seu brilho próprio.
Ana desfilava, não como queria, mas enfim desfilava novamente. Mas Ezequiel não estava satisfeito, pois em sua mente confusa ainda pairava uma dúvida: Ele desejava saber se, em meio ao calor da bateria, alguém conseguiria perceber um estampido seco ecoando...
Naquele carnaval, as cinzas chegaram antes da quarta-feira...
     

Um conto de Flávio de Souza
 

Dezembro 13 © Copyright 2010

©