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A Casa das Almas


Para Leonardo Nunes Nunes, Paulo Soriano e Henry Evaristo.


Ninguém sabe ao certo quando ela foi construída, mas todos sabem que foi desativada sob estranhas circunstâncias até hoje não explicadas de forma convincente. Mas, independente disso, lá está ela, sozinha em meio ao campo, com apenas uma estreita estrada de terra, que no passado era o único caminho em meio ao ralo matagal que levava até o portão principal da Igreja de Tampadas.

Tampadas é o nome do pequeno vilarejo localizado no interior do país; uma pequena cidade que ainda não tem luz elétrica, e quase não tem população também – muitos foram embora após o fechamento do único templo cristão do local; e os que ainda vivem por lá, não chegam perto da pequena igreja de ar sombrio e desolado.

Embora a população local evite aquele solitário templo, o aviso de não aproximação faz parte da tradição oral daquele povo, e os forasteiros que porventura passam por ali não tem conhecimento da história daquela estranha igreja – muitos nem ao menos tomam conhecimento de que há uma. Dizem que os que por ali se aventuraram nunca mais foram vistos.

Um dia, um desses viajantes chegou até o pequeno vilarejo caminhando. Carregava apenas uma mochila de viagem e uma máquina fotográfica pendurada no pescoço. Chegou até o único bar existente, bebeu um refrigerante com tamanha sede que parecia que não bebia nada há dias; quando terminou, puxou conversa com algumas pessoas que estavam por ali, fazendo perguntas sobre o vilarejo, modo de vida e outras coisas sem muita relevância. Depois de ouvir as respostas, disse que estava de férias. Estava fazendo um passeio pelo Brasil, visitando apenas as pequenas cidades e os vilarejos do interior, tirando fotos e escrevendo um diário.

Após duas ou três horas de conversa e muitas fotos, pagou a bebida e saiu. Quando estava na estrada de saída do vilarejo, viu uma estreita estrada de terra, já coberta pelo mato alto que crescia à sua volta e quase escondia sua entrada. Sem ninguém por perto, o estranho resolveu percorrer aquela estrada, curioso para saber aonde iria dar, já que as casas e o pequeno comércio do vilarejo encontravam-se concentrados na extremidade sul. Com muita dificuldade, caminhou por cerca de dez minutos, até sair em um campo aberto, cercado por algumas árvores que pareciam tão velhas quanto a própria humanidade. Algumas com troncos retorcidos, outras com troncos que pareciam terem sido queimados; mas todas as árvores tinham em comum o fato de não terem folhas.

Observando ao redor, pôde perceber, a alguns metros à frente da estrada, uma pilastra de pedra com quatro ou cinco metros de altura que servia de pedestal a um anjo de mármore que um dia fora branco, mas agora estava tomado pela terra e pelas marcas da chuva e do tempo. Havia algo na expressão do anjo - que olhava para cima - que o deixou triste e com um sentimento angustiante de solidão. Teve certeza de que o anjo começou a chorar quando olhou para ele.

Alguns metros adiante viu uma igreja, de aspecto sombrio e de abandono. Suas paredes, de pedra, já mostravam o quanto o tempo pode ser cruel; a entrada principal consistia-se de uma porta dupla de madeira pintada de azul, já descascada e bem deteriorada. Duas pequenas janelas pairavam como olhos atentos em cada lado da porta. Estendendo-se verticalmente acima do telhado havia uma torre, aonde se podia ver o grande sino de bronze totalmente imóvel, como se estivesse em seu repouso eterno. Chegando perto, percebeu que o portão principal estava fechado, e não parecia haver ninguém por perto. Ao forçar um pouco a porta, esta se abriu, dando passagem para o salão principal.

A única iluminação dentro da igreja era proveniente dos raios de sol que passavam pelas pequenas janelas – sem vidros – nas paredes laterais. Marcas de água que há muito correram por ali indicavam um problema no telhado, e tornavam as paredes um pouco melancólicas. Os bancos de madeira já estavam quase ou totalmente consumidos pelos cupins. Encantado com a beleza sinistra do lugar, o estranho tirou diversas fotos, e dirigiu-se ao que parecia ser a sacristia, no final de um dos corredores.
Quando o estranho passou pela porta, um ar de curiosidade e espanto tomou conta do seu outrora estado de empolgação. A sala, que devia ter por volta de quinze metros quadrados, tinha todas as quatro paredes do recinto cobertas por fotografias antigas, todas com um tom de sépia, emolduradas em belas molduras – todas feitas artesanalmente – e embora aparentassem estar ali há muito tempo, ainda mantinham um bom estado de conservação. Do chão ao teto, tudo estava coberto por fotografias. Embora não houvesse qualquer texto que identificasse as fotos, ele pôde perceber que eram retratos de famílias.

Por vários minutos o estranho ficou ali, olhando as fotos, apreciando aquele ar nostálgico, admirando aquela estranha tristeza implícita no rosto das pessoas – que, curiosamente, não sorriam nas fotos. Algumas fotos aparentavam ser da década de 20, outras de 30, mas certamente nenhuma delas era de depois da década de 40.

Depois de olhar rapidamente as várias fotografias, acabou parando em uma – que talvez tenha sido escolhida aleatoriamente, ou apenas tenha chamado a sua atenção por algum motivo qualquer. Na foto, uma família de nove pessoas posava de forma quase mecânica. Como que a estudando, o estranho ficou ali, por vários minutos, analisando cada detalhe existente na imagem. Com os olhos cheios d’água e um sentimento de vazio, proferiu um palavrão ao mesmo tempo em que saltava para trás, quando percebeu que uma das crianças da foto começou a chorar. Ele coçou os olhos, achando estar vendo coisas, e sacudiu a cabeça, mas percebeu que não só a criança chorava como as outras pessoas da família gritavam em extrema agonia, com a dor estampada em seus rostos; ao mesmo tempo, pareciam desesperadas para sair da foto.

Ainda atordoado pela visão que acabara de ter, olhou ao redor e percebeu que em todas as fotos a cena se repetia: todas as pessoas gritavam, choravam, e tentavam desesperadamente sair de suas pequenas prisões particulares. O som misturado de choro de crianças e adultos, com os gritos de agonia, era como uma faca que atravessava seu cérebro. Naquele momento, ajoelhou-se tapando o máximo que pôde os ouvidos e fechou os olhos. Em seu interior, parecia estar sofrendo como aquelas pessoas. Chorou como se estivesse também preso em uma moldura feita artesanalmente.

Algum tempo depois – ele não podia mensurar se foram minutos ou horas – levantou-se, mas ainda sentia o desespero das pessoas ao seu redor. Eram pessoas, não eram? Ou eram apenas suas almas aprisionadas para toda a eternidade em uma foto – ou o que parecia ser uma foto?

Não suportando mais a agonia de estar confinado naquela pequena sala, correu, dirigindo-se à porta pela qual entrara, mas só teve tempo de virar-se para perceber que não havia qualquer porta ali; todas as quatro paredes estavam cobertas de fotografias, e não havia portas ou janelas por onde sair. Gritando, atirou-se desesperado contra as paredes, tentando, inutilmente, encontrar uma forma de sair daquele lugar. Com bruscos movimentos, arremessou as fotos para longe das paredes, mas, a cada porta-retrato que caía, um novo surgia em seu lugar, e mais e mais pessoas gritando, chorando, em uma grande sinfonia desafinada.

Sem qualquer esperança de sair daquele lugar misterioso, após muito gritar e chorar, percebeu que em uma das paredes havia uma moldura com uma foto em que não havia ninguém, apenas um quarto. Analisou aquele estranho objeto mais de perto, ao mesmo tempo em que tentava entender o que se passava naquele lugar. Percebeu no pequeno cômodo dentro daquela foto alguma familiaridade, e, novamente, entrou em pânico: aquele havia sido o seu quarto quando criança. A mesma cama, o mesmo tapete em forma de palhaço, a mesma janela próxima à cama. Naquele momento, o pânico foi tomado por uma saudade; saudade de tempos que nunca mais voltariam, e entendeu que o objetivo de qualquer fotografia era congelar um determinado momento no tempo; um momento que nunca mais será esquecido e ficará ali para sempre. Lembrou-se de quantas vezes desejou ter congelado o tempo.
Fechou os olhos, e a sacristia foi tomada por um imenso clarão, uma intensa luz vermelha. Quando apagou, o quarto havia voltado ao seu estado anterior, a porta encontrava-se no mesmo lugar que estava quando o estranho a cruzou. Ele, não entanto, não estava mais ali; agora, ele fazia parte daquele imenso mural nostálgico, e naquele momento, ele estava de volta ao quarto que fora seu quando tinha 3 anos de idade. Passaria toda a eternidade preso àquele lugar, e talvez um dia implorasse para sair dali, da mesma forma que todas as outras pessoas que também faziam parte daquele lugar.

Um Conto de Luiz Poleto
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Estação Inferno







Desci as escadas da estação Cinelândia muito rapidamente para tentar entrar na composição do metrô que já soava o sinal de que as portas iam fechar-se. Como de costume, tive que trabalhar até tarde e já passava um pouco das oito horas da noite quando peguei o metrô, que, devido ao horário, não estava cheio. Este era um dos pontos positivos de trabalhar até tarde: além do ligeiro aumento do salário no final do mês, o metrô normalmente estava vazio. As vezes eu até conseguia um lugar para sentar, e hoje, felizmente, foi um desses dias. Sentei-me em um banco vazio, perto da janela – que aliás, não serve para muita coisa, dada a escuridão que consome aqueles intermináveis túneis.






Quando a composição iniciou a viagem, abri minha mochila para pegar o livro que vinha lendo. Lembro-me de ter xingado qualquer coisa quando percebi que o livro não estava ali; “devo ter deixado em cima da escrivaninha do quarto”, pensei, chateado por ter que passar toda a viagem olhando através da janela para a escuridão que nos envolvia como uma onda que, surgida em um mar tempestuoso, envolve um barco pesqueiro qualquer perdido na tempestade, sem qualquer chance de defesa. Felizmente a viagem é curta e leva menos de 20 minutos; o grande problema é passar estes 20 minutos olhando para a escuridão. Einstein certa vez usou uma analogia para explicar a sua Teoria da Relatividade, era algo como “Uma hora passada com uma linda mulher parece um minuto, enquanto um minuto sentando em cima de um formigueiro parece uma hora.”, pois, neste exato momento, eu sentia-me sentado em cima de um formigueiro.






Quando chegamos à estação seguinte, apenas algumas pessoas entraram na composição, ocupando o resto dos lugares que estavam vagos. Ao entrar no túnel, eu já estava um bocado sonolento, com os olhos cerrados, tentando, em vão, enconstar minha cabeça na janela, quando, por um momento, as luzes da composição começaram a piscar, como se estivessem querendo falhar, espetáculo este que durou apenas alguns segundos. Subitamente, a composição desacelerou brevemente, para em seguida retomar a velocidade normal, o que resultou em um tranco um pouco brusco, o que fez com que os passageiros sacudissem levemente em seus assentos; alguns mau-humorados, como de costume, reclamaram do condutor e balbuciaram alguns palavrões. Enquanto nos recompunhamos do breve saculejo, as luzes da composição piscaram novamente, desta vez com um intervalo maior, e pude sentir que a composição perdia novamente a velocidade. Não dei muita importância para estes acontecimentos pois estava quase pegando no sono, e, à medida que meus olhos foram se fechando, sentia meu corpo leve, e minha mente em um estado de torpor muito agradável.






Acordei subitamente, após uma freada brusca da composição em conjunto com um ruído ensurdecedor do atrito de metal contra metal – o que fez lembrar-me de uma antiga professora de química em minha época de ginásio, que quando queria chamar a atenção da turma, tinha o hábito inconveniente de arrastar, com força, as unhas no quadro negro, provocando um som enlouquecedor -, o que fez com que meu corpo fosse arremessado contra o assento à minha frente e meus pensamentos fossem rapidamente desligados do que quer que seja que eu estivesse pensando naquele momento. Movi meus braços tentando apoiar-me em qualquer coisa; tive, por alguns breves segundos, a sensação de estar despencando do vigésimo andar de um prédio em queda livre, tentando desesperadamente agarrar-me a qualquer coisa que minhas mãos pudessem alcançar. Consegui proteger meu rosto com as mãos antes que ele batesse contra o assento, o que resultou em uma das mãos latejando por algum tempo devido ao impacto.




O ruído, que pareceu um eternidade dentro de meus ouvidos, finalmente cessou e a composição pareceu estar totalmente parada. Algumas lâmpadas, que outrora iluminaram o interior do vagão, estavam naquele momento apagadas, e as poucas que restaram resumiam-se a funcionar mal, piscando como os fogos de artifício que iluminam intermitentemente a orla da praia durante a virada do ano. Olhei ao meu redor e vi algumas pessoas no chão, tentando levantar-se com alguma dificuldade. A maioria, como de costume em qualquer situação fora do cotidiano, estavam em desespero, chorando, gritando, rezando. A escuridão que assombrava o túnel ao nosso redor parecia densa a ponto de querer invadir e tomar os poucos focos de luz restantes. Por um breve instante tive a impressão de que a escuridão estava se movendo e sorria maliciosamente para nós.






Apesar do pânico tomar conta das pessoas dentro daquele vagão, consegui manter a calma. Dirigi-me em direção ao comunicador que permite contato com o condutor, na esperança de conseguir qualquer informação que pudesse nos acalmar. Não tive dificuldade em remover a tampa de acrílico que impedia que o botão se movimentasse. Nesse momento algumas pessoas já estavam um pouco mais calmas, ajudadas pelos poucos que ainda estava lúcidos. Girei o botão para a posição emergência e aguardei, em vão, por uma resposta do condutor. Senti um calafrio quando não obtive resposta; ou o rádio estava quebrado, ou o pior tinha acontecido: o condutor havia morrido com o impacto. Entre gritos, choro e frases desconexas, ouvia-se especulações sobre as possíveis causas daquela parada repentina, mas a verdade é que ninguém tinha a mínima idéia do que realmente tinha acontecido.






Sem o comunicador, que nos permitiria saber se a ajuda estava próxima, e sem um único telefone celular que estivesse com sinal suficiente para fazer uma chamada, não tinhamos muito o que fazer. Lembro-me de alguém ter sugerido que tentássemos abrir as portas, idéia que na hora foi contestada por muitos dos presentes. “E se cairmos em cima dos trilhos eletrificados?”, “E se outra composição passar ao lado e atropelar todos que estiverem na linha?”. Os argumentos eram muitos, e válidos inclusive, porém, algumas pessoas não queriam ficar muito tempo ali dentro sem saber o que aconteceria em seguida. Caminhei em direção à porta que separa os vagões, afinal, seguindo por ali, estariamos perto de passageiros de outros vagões e poderíamos, de dentro da própria composição, tentar chegar perto do condutor e saber o que houve, se ele por acaso estivesse vivo. Quando me aproximei da porta, no entanto, um frio percorreu-me toda a espinha, fazendo-me arrepiar e sentir uma estranha sensação de medo e solidão, em uma amargura que por um instante tomou conta de meu coração; ao olhar através do vidro, a única coisa que vi foi a escuridão que nos assolava desde o primeiro túnel que entramos, a mesma escuridão que envolvia a composição como uma onda que, surgida em um mar tempestuoso, envolve um barco pesqueiro qualquer perdido na tempestade. Com os olhos arregalados e sentindo o corpo mole, corri na direção oposta, tentando alcançar a outra porta que nos ligava ao outro vagão. Para meu desespero, a única coisa que vi foi a mesma escuridão. Era como se o nosso vagão tivesse sido abandonado no túnel.






- Os outros vagões sumiram! – gritei, sentindo a respiração ofegante.






- Como assim sumiram? – perguntou-me um outro passageiro, que apesar de visivelmente abalado com a situação, tentava manter a calma.






- Olhem através dos vidros! Não há nada a não ser escuridão! Estamos abandonados aqui!






Arrependi-me profundamente de ter pronunciado as últimas palavras, pois após a confirmação visual de que estávamos abandonados ao destino, o pânico instaurou-se novamente; recomeçaram os gritos, choro e rezas.






Quando finalmente nos acalmamos, decidimos, por unanimidade, tentar abrir as portas do vagão e tentar achar uma saída para fora daqueles túneis. Apesar de ter concordado, a idéia não me agradava muito, pois a escuridão do lado de fora parecia agora densa a ponto de querer empurrar o vagão, levando-nos sabe-se lá para onde. Juntamente com outros cinco homens que ali estavam, começamos a forçar a porta, que parecia muito mais forte que todos nós; quanto mais fazíamos força para abrí-la, mais ela fazia força para manter-se fechada. Cheguei a pensar por um momento que o vagão não queria que saíssemos dali.






Inopinadamente, a porta pareceu ceder aos nossos esforços, deslizando bruscamente para os lados, o que produziu um estampido ao terminar de abrir que nos assustou brevemente. Segundos após a porta ter se aberto, um cheiro horrendo entrou, trazido por uma leve brisa, era um misto de azedo e salgado, porém denso e penetrante; naquele momento senti um enorme embrulho no estômago, como se ele estivesse tentando virar pelo avesso sem o meu consentimento. Passado o espanto, e quando o cheiro foi levemente dissipado, viramo-nos para a porta a procura de um caminho a seguir, porém, não conseguíamos enxergar um único palmo a nossa frente. A escuridão que me acompanhava desde o primeiro túnel estava agora tão densa e tão sufocante que chegava a nos ofuscar.






- Vou descer – eu disse, olhando para o chão tentando calcular a altura a que me encontrava deste.






No momento que me preparava para descer, no entanto, fui surpreendido por algo, no mínimo, inesperado. Quando pus o pé para fora do vagão, senti que este chocou-se com algo sólido e rígido. Depois de muito tatear com os pés, concluí que tratava-se de uma plataforma, ou algo no mínimo parecido. Arrisquei apoiar-me com os dois pés, o qual fui bem sucedido. Não fazia o menor sentido, ninguém entendia nada. Como poderia haver uma plataforma no meio de um túnel? E por que diabos não passava nenhuma outra composição por aqueles túneis? A situação que já não fazia nenhum sentido antes, fazia menos ainda agora.






Caminhei cuidadosamente por cima daquela plataforma, cada passo era dado de forma muito cautelosa para evitar cair ou tropeçar em algo inesperado. Apesar de ser bem larga, não consegui saber o quão larga era, mas o comprimento era grande; já havia dado cerca de cinquenta passos sem cair ou tropeçar. Cada passo era acompanhado de meus braços totalmente esticados à frente, como se estivesse buscando uma parede imaginária para me guiar. Algumas pessoas começaram a deixar o vagão e a vir atrás de mim, depois de perceberem que a plataforma era aparentemente segura. O resto, relutantemente, concordou em permanecer no vagão para o caso de alguma ajuda aparecer.






Não sei quanto tempo passamos caminhando naquele passo vagaroso e precavido, mas tenho certeza de que foi bastante. Sempre à frente naquela jornada rumo ao desconhecido, fora eu quem encontrou uma porta fechada à nossa frente. Eu estava tateando cegamente, com os braços esticados a frente, quando senti que minhas mãos haviam tocado alguma coisa. A textura lembrava madeira revestida com fórmica, e sua largura media pouco menos de um metro; quando encontrei a maçaneta, fria e com uma leve camada do que parecia ser ferrugem, tentei girá-la e percebi então que a porta estava trancada, o que não era surpresa. Como não havia qualquer maneira de prosseguir além daquele ponto, a solução foi arrombar a porta, o que se mostrou uma tarefa muito simples quando executada por mais de uma pessoa ao mesmo tempo.




Ao abrir a porta, quase perdi os sentidos quando novamente aquele cheiro azedo que nos beijou levemente a face quando abrimos a porta do vagão tornou a beijar-nos ao abrir esta porta; desta vez, porém, o cheiro era mais forte e mais azedo. Quando meu cérebro se acostumou com o cheiro, olhei para o lugar que a porta nos conduziu. Duas lâmpadas fluorescentes dispostas horizontalmente em uma calha suja tentavam quase que inutilmente iluminar a sala úmida e quadrada, de aproximadamente vinte metros quadrados, totalmente vazia, com que nos deparamos. As paredes de pedra sem nenhum tipo de acabamento tinham cerca de três metros de altura e formavam ângulos de noventa graus com o teto, tambem sem acabamento, de onde surgiam alguma goteiras. Demorei a reparar uma escada embutida na parede oposta à porta em que estávamos. Os degraus pareciam de ferro e estavam bastante maltratados pela ação do tempo, encontrando-se totalmente oxidados. Olhando para a parte do teto aonde estava a escada, percebi uma pequena entrada de aproximadamente um metro quadrado. Ali jazia toda a nossa esperança de sair daquele lugar.






Escolhemos aleatóriamente um candidato para se aventurar para aquela extremidade. Não demoramos nesta escolha pois a vontade de encontrar uma saída era compartilhada por todos que ali estavam. Quando o sujeito deu o primeiro passo para dentro da sala, no entanto, o inesperado – e inimaginável, diga-se de passagem – aconteceu. As paredes, antes de pedra e sem nenhum acabamento, adquiriram uma cor avermelhada, tão forte que parecia brilhar, com alguns detalhes em amarelo, e pareciam dançar lentamente ao som de uma lenta e hipnótica música eletrônica. O que antes era o teto parecia agora um amontoado de chamas que teimavam em retornar ao lugar de onde queimavam, sem fazer, no entando, som algum. O chão tornou-se um abismo aparentemente sem fim, escuro e sombrio como a escuridão que vinha nos acompanhando desde o início. Passamos a ouvir gritos de agonia e dor profunda, parecia que muitas pessoas estavam sendo torturadas ininterruptamente. Os gritos ecoaram dentro de minha cabeça, como se naquele momento meu cérebro tivesse se transformado em geléria, deixando a caixa cerebral totalmente vazia. Aquele cheiro, azedo, parecia jorrar aos montes de dentro do abismo, desta vez sem trégua ao nosso olfato. O pobre sujeito, que já havia posto um dos pés dentro da sala, não conseguiu segurar-se e despencou, rumo ao desconhecido – ou rumo ao inferno, como um dos presente teimou em apelidar aquela sala. Nada pudemos fazer quando um grito forte e desesperado, recheado de terror foi proferido de sua garganta. Atônitos, ainda ponderando se o que estávamos assistindo era real ou apenas um reflexo maldoso de nossas mentes sobre nossos corpos cansados, só pudemos olhar a queda até que o som do grito fosse sumindo, tornando-se cada vez mais distante, como uma música em processo de fade-out.






Ainda sem conseguir compreender totalmente o que havia ocorrido, ficamos parados ali na porta, contemplando o que parecia ser o ponto mais distante do universo, o ponto aonde ninguém jamais chegara. Se eu fosse religioso, teria acreditado que aquilo era uma das entradas do inferno como alguém disse anteriormente. Tomada pelo desespero que nos consumia, uma das pessoas que integrava o grupo virou-se para fugir, gesto que foi acompanhado por todos os presentes, mas, se aquilo era o inferno, ele não estava disposto a nos deixar fugir. Fomos impedidos de correr quando uma força invisível começou a nos sugar em direção ao abismo, tal qual os integrantes de uma nave espacial que tem um buraco na fuselagem são puxados pelo vácuo. Não havia aonde segurar, e a força era demasiadamente forte. Os mais fracos foram puxados sem oferecer qualquer resistência. Eu consegui me segurar na porta com toda a força que ainda me restava, vendo, impotentemente, as pessoas sendo tragadas para aquele buraco. Alguns tentavam agarrar-se a mim na esperança de permanecerem vivos, e eu tentava ajudá-los a ficar, mas a fome do abismo era maior; eu ouvia os gritos, o choro, sentia o desespero de cada pessoa que passava por mim e era engolida por aquilo. Eu chorava, e mesmo as lágrimas que escorriam para for a de meu rosto era também sugadas pelo insaciável abismo; sentia minha mente derreter como geléia a cada gemido proferido pelo abismo, tive a impressão de que aquilo estava vivo e falava – na verdade, eram grunhidos lentos e abafados, grave como se tivesse sido pronunciado por alguém sem as cordas vocais.






Alguns minutos depois da última pessoa ter sido engolida, minha resistência estava-se esgotando; quando, quase desistindo de segurar-me na porta, ouvi o barulho vindo do abismo cessar, e a força que nos puxava subitamente parou. Caído no chão totalmente tomado pelo cansaço, olhei para trás e vi a mesma sala que viramos quando abrimos a porta. As mesmas paredes de pedra, a mesma escada enferrujada na parede. Fechei a porta e, com o coração acelerado, a respiração ofegante, os olhos inertes pelo terror, tentei correr de volta ao ponto de origem, mas minhas pernas não obedeceram, senti que a escuridão novamente avançava sobre mim; cai inconsciente no chão, com o corpo totalmente inerte.






Quando acordei, estava em um quarto de um hospital qualquer no centro do Rio de Janeiro. O médico me disse que eu estava bem, tivera apenas um desmaio devido à fadiga e recomendou-me diminuir um pouco o ritmo de trabalho. Ao perguntar como havia chegado ali, limitou-se a dizer-me que eu fora trazido por funcionários do metrô, após ter sido encontrado desmaiado na estação da Cinelândia, alguns metros após a entrada do túnel em direção à Zona Norte. Cheguei a retornar à estação alguns dias depois para informar-me sobre o que realmente havia ocorrido, mas tudo o que sabiam é que alguns transeuntes chamaram a segurança ao me ver passar a placa de “Acesso Restrito. Somente pessoal devidamente identificado e autorizado, de acordo com a legislação interna em vigor.” e sumir na escuridão. Os funcionários disseram que nunca houve no metrô um acidente grave como o que eu havia reportado; tampouco sabiam da existência de qualquer plataforma dentro dos túneis ou de qualquer sala com a descrição que eu dera.






Apesar de alguns colocarem em dúvida minha sanidade, diante da falta de qualquer evidência que possa comprovar os eventos que presenciei, até hoje, sempre que fecho meus olhos, ainda sinto aquele cheiro azedo impregnando o meu nariz, e ainda posso sentir a densa escuridão avançando em minha direção tentando tragar-me para algum lugar que desconheço qual seja. Quando cai a noite e me recolho para a cama para tentar dormir, ainda posso ouvir os gritos recheados de dor e angústia que alcançavam nossos ouvidos partindo de dentro do abismo; ainda posso ouvir, claramente, aquele estranho grunhido proferido pelo abismo, como se estivesse me fazendo um convite.





Um conto de Luiz Poleto

 

Dezembro 13 © Copyright 2010

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