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A Vingança do Ghoul



Escrito por Ramon Bacelar



   “A cesta de papéis é a melhor amiga do escritor.”- Isaac Bashevis Singer

...e deferido o último golpe, a besta pálida estrebuchou e caiu. Estava morta.

                                         FI


Com mãos trêmulas de satisfação, Lovepoe Whitewood pressionou a tecla M da antiga Remington 12 e sorriu de felicidade. Não podia segurar seu contentamento, A Vingança do Ghoul estava finalizado: fi-na-li-za-do. Pronto, Prontinho da Silva!! Pronto... para mofar em uma gaveta fedorenta a naftalina e cocô de barata.

Apoiou-se no queixo num gesto pensativo e mais uma vez afogou-se em sua realidade tediosa. Não era um bom escritor: não tinha o vocabulário do Lovecraft e a verve poético-melancólica de um Poe; muito menos a economia de efeito do M.R. James. O sense of place do Algernon Blackwood lhe zombava das selvas canadenses, enquanto que a sutileza e finura psicológica do Robert Aickman e Walter de La Mare davam-lhe língua de um ciclópico abismo instransponível. Não tinha grana para ir ao País de Outubro do Bradbury, nem conhecia o caminho. Jamais resvalava em excessos pós-modernos porque sua escrita era tão magra quanto sua geladeira e conta bancária. Suspirou pesarosamente e a realidade de sua condição acenou-lhe do abismo do Kafka (iuhúúú, misery loves company!): Não passava de um sub-Stephen King em crise de abstinência porcamente traduzido (comenta-se que se o comparassem com a Stephanie Meyer cairia num vazio depressivo). Mas nada disso importava; levantou os braços e gritou: The Vengeance of the Ghoul is mine e ninguém tasca!!!

Num misto de decepção e felicidade apanhou o manuscrito; acariciou-o como um filhote de gambá, beijou-o como se beijasse a boca da desdentada Berenice e de sua superfície amarelada, milhares de ácaros, como em uma insana corrida de espermas, penetraram nas narinas cabeludas. Abraçado ao manuscrito repetiu: é meu e ninguém tasca... Ninguém.


As 23:59 min decidiu não deitar; queria começar a revisão, precisava de um café. Da moldura vitoriana no corredor que dava para a cozinha, o sorriso zombeteiro da Mary Shelley o atormentava num tom de chacota pela sua colcha de retalhos sem o menor senso de ritmo narrativo batizado de A Vingança do Ghoul: O verdadeiro Monstro de Frankenstein; a dois passos da cozinha o badalo da meia noite o arremessou com nova energia ao objetivo.
Na ânsia por um café, não notou a luz acesa, mas antes de alcançar o umbral deu de cara com um intruso de charuto na boca saudando-o com sua caneca do Bela Lugosi!

-Boa noite papi. Vai um cafezinho aí? Descafeinado e saudável para hipertensos como tú... acabou de sair do fogo.

Com olhos esbugalhadamente surpresos pela figura baixa, obesa e palidamente grotesca o encarando, nauseado pelo odor de bosta de gato que o charuto exalava...

— O que significa isso?! Quem é você?!! - berrou com um misto de surpresa e indignação.

— Ora, ora papi, como não sabe?!

Com um súbito clarão de reconhecimento, Lovepoe se deu conta do seu estado de fadiga mental: de tanto dialogar com sua criatura no papel...

— E aí, vai dar um grau em meu visual?- perguntou o Ghoul.

— Quê?

— Progenitor desnaturado.

-Mas...

— Medíocre!! - esbravejou numa explosão de fúria e ódio virulento - Minhas orelhas são pontudas, meu nariz e boca macilentos; criou-me como um salva-vidas de aquário, um pintor de rodapé e... já não basta... já, já...além do mais... - suava e tremia de ódio dos pés a cabeça- Minha bunda é sebosa e caída PORRAAAAA !!!!!

— Mas você é um Ghoul, filhotão!! - respondeu por puro impulso.

— Um genérico e pouco imaginativo Ghoul. Produto de uma imaginação tosca, preguiçosa e repetitiva; afogada na mesmice e mediocridade, assombrada pelos espíritos obsessores do conservadorismo estilístico e repetição temática; incapaz de nada criar além de meros adolescentezinhos Kingeanos, vampirinhos chorões Riceanos e pastiches LOVECRAFTEANOS!! Você é ruim demais!!! - esbravejou.

Das profundezas do seu ser, recolheu os farrapos de auto-estima e levantou a cabeça.

— Seu monstrinho de merda!! - berrou com ânimo renovado.

— Sou mesmo; criado a sua imagem e semelhança, merdão. – apontou o indicador - Caso contrário não estaria aqui... A culpa é sua! – continuou - Só um artista do seu nível para criar um Ghoul sem apetite. Vou virar vegetariano!!

— Assim você me ofende filhão. - mais um golpe deferido em sua já baixíssima auto-estima.

— Já não basta me confinar em uma existência tediosa; em um mundo frágil, poeirento e amarelado. – espirrou - Ácaro, poeira, tosse e asma para dar com o pau... E ainda por cima me mata no final!!

Num acesso de ódio cuspiu o charuto e arrebentou a caneca no ladrilho.

— Filhote, filhote, todos tem defeitos... apesar dos teus... Eu te amo!!

— Caralho... Meu Deus. - abaixou a cabeça - Tá pensando que é novela mexicana imbecil!! – gargalhou. – Se pelo menos fosse o Chaves...

Pegou um estilhaço de cerâmica e apontou para a garganta.

— Você...- o silêncio preencheu os espaços vazios – Vo-cê...

— Sim! Faço sim!!- gotas de suor brotaram como medos úmidos. - Vou revisar agora mesmo!

-Revisar?? – pressionou o pescoço - Ou você o reescreve i-ma-gi-na-ti-va-men-te; liberte-me deste maldito status de um insignificante e humilhante borrão de tinta, cure minha asma e me dê uma existência digna de um comedor de detritos humanos...

Sentiu uma gota de sangue quente desbravar seu peito esquelético.


                                                                               ***


Dedos famintos, ansiedade borbulhante, medo avassalador, Lovepoe noite após noite encarava as teclas barulhentas e escrevia, escrevia, escrevia...

Sua criação não mais iria lhe atormentar, não só o ressuscitou como decidiu colocá-lo como protagonista de uma série cujo esboço, A Vingança do Ghoul II: A Missão, já lhe acenava das profundezas de sua renovada criatividade. Visualizou-o escalando a lista de best sellers ao lado do Paulo Coelho e Augusto Cury; se viu fechando contrato para a coleção de bancas de jornal, do ladinho de Como Ser Feliz Fazendo Sexo 24 Por Dia Sem Tirar e As Melhores Receitas da Ofélia. Curvaria às pressões editoriais para uma décima primeira parte. Reescreveria parágrafos e amenizaria o tom para torná-lo mais palatável aos paladares menos sofisticados; cederia à tentação de colocar na capa um mago encapuzado ou um adolescente míope, mesmo que estes nada tenham a ver com o enredo, ou então modificaria a trama para combinar com a ideia da luxuosa sobrecapa laminada em altíssimo relevo; esvaziaria os bolsos de colecionadores abonados, nerds tapados e estetas iletrados com inúteis edições limitadas em capas de couro e verbosidade redundante; massagearia o ego mensalmente fazendo charminho, negando autógrafos e entrevistas; arrotaria Cheval Blanc e Heidsiek safra 1907 em encontros e convenções; encheria a bola dos fãs com blogs estilosos e frases de efeito. Optaria até mesmo por um ghost-writer em dias de ociosidade criativa e pura preguiça: Dinheiro demais né ??

Levantou-se e foi ao banheiro tirar a água do joelho (aquela aliviante mijadinha); em meio ao borbulho do cano de descarga fedorento, outro som, não menos incômodo e ainda mais nauseabundo incomodou-o, mas não identificou; provavelmente um inquilino meditando no vaso sanitário ou filosofando com a cerâmica carcomida.


Sentou-se e novamente ouviu o rugido; desta vez teve certeza que sua fonte não tinha origem no universo fecal. Era um grito de tormento misturado a ansiedade; chutou a lixeira e estraçalhou a gaveta enquanto esmurrava a cabeça repetidamente; queria ir contra a parede, sangrá-la, sabia que estava preso à mente e sua infinita capacidade de criar ilusões. Sabia que não passava de um mero mecanismo gerador de alucinações, para protegê-lo de uma realidade mesquinha e burocrática ou arremessá-lo numa existência ainda mais caótica e tormentosa; suspirou profundamente, mas antes que um grito de desespero o impulsionasse a esmagá-la em mil pedaços, o mesmo mecanismo ilusório enviou-lhe outro impulso sensorial: sentiu um toque frio na nuca e do limite da visão vislumbrou uma unha suja explorando sua gengiva.

— Papi?

A respiração saiu irregular, sentiu a energia vital se esvair e emudeceu.

— Que pena papi.

— Está pronto! Prontinho!! Mais uma revisão... Umazinha! Vou transformá-lo em celebridade imortal, ao gosto do freguês hehehe... - olhou-o com ternura - Fará parte de uma série com contrato atrelado a Hollywood e o escambau; já tenho a segunda parte esboçada filhote!

— Tssss, tsss, que pena... – espirrou - ...na vida as coisas quase nunca saem como planejado. Admiro seu esforço e dedicação... - escarrou -...dois meses a fio escrevendo e revisando-o para agradar o filhão complexado... Mas ainda estou asmático e resfriado, minha bunda continua sebosa e caída, e ainda por cima... papi, estou com gases!

Sentiu uma pressão na garganta; a unha penetrando seu pomo de adão, suas órbitas como dois sapos saltitantes: o grito estrangulado retornou num eco de socorro e...

E eu, Ramon Bacelar, escritor medíocre de escrita magra, vocabulário limitado e imaginação opaca, afogado em minha realidade tediosa... Sinto um toque frio na nuca, olho para o lado... dedos,  unha... turvo... n-não!...nã ..n. ... ... ... ... ... ... ...

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Meu nome é Ana. Eu vou matar você. E prometo, você vai gostar.




Conto de Tânia Souza

  Ana. Um nome simples para uma garota comum, passos ecoando pelas ruas de uma cidade esfumaçada e suja. Ao mundo, a imagem de uma garota que vaga na noite escura e conta outra sina: menina de família, comportada. Ana se arriscando por lugares obscuros. A quase inocência costuma ser um atrativo interessante... Você me olha e vê uma moça que estudou, mas não muito; deduz que vou me casar com um bom rapaz e viver em tédio, que devo ser apenas mais uma Ana e, quem sabe um dia, esposa, mãe, avó. Talvez o que veja seja apenas uma boa menina, com vontade e desejo de se arriscar. Ana quase pecadora.

       Os seus olhos e os olhos do mundo não me vêem: não como uma andarilha; não essa criatura perversa, lasciva, sedenta de sangue e vingança; não como uma moça que se esconde nas sombras; não uma arma. Não como de fato sou.

       Mas é agosto. E devo pagar minha dívida. Agosto tem cheiro de sangue, de carne e desejos inconfessos. Quando agosto chega, desperto em minha sina ancestral. Sinto então os sonhos mais secretos de cada um e meus seios estremecem na ânsia de uma missão que outrora me causou tanta dor. Quando agosto chega, é hora de caçar.

       Meus saltos ecoam na calçada e os olhos mortiços da noite me seguem. Essa cidade tem cheiro de fuligem. Eu gosto do cheiro infecto destas ruas. Mas não devo ficar aqui por mais tempo. Vejo a cidade uivando entre as luzes e sombras... Os passos dessa gente carente, perdida entre concreto e metal retorcido, olhos embaçados com tanta sede e vicio me buscam e ainda que não saibam, me imploram a cada dia. No entanto, você foi o escolhido. Sinto sua alma percorrendo-me e suas paixões me renovam. Eu sou a faca, a arma apontada para seu peito, a lâmina que vai dilacerar sua carne. Mas ainda assim você sorri e vem a mim. Entregue. Dócil.

       Meu nome é Ana. Eu vou matar você. E depois, bem, depois verei por onde vou... Não é minha escolha matá-lo. Nunca escolho e aprendi a não negar, a dor é muito forte. Eu não gosto da dor. Bem, talvez goste, um pouco. Afinal, é agosto e para meu gosto, o seu. É o tempo de caçar e pagar a minha divida. É agosto.

       Você tem os olhos do mundo, agora fixos em meus lábios e, olhando para minha boca, ri quando digo que sou perigosa. Sim, já lhe disse que sou perigosa. Não gosto de mentir. Você sorri e não acredita, acariciando minha face. Você vê apenas a beleza que Ele me deu. Toca em meus cabelos vermelhos, tão preso em meus olhos verdes, bonita sim, quase nem creio no espelho. Bonita e letal.

       Eu bebo seus gemidos quando minhas unhas rasgam sua pele e ainda assim, me implora por mais. E quando minha língua lasciva sorve suas lágrimas, seu sangue sacia minha sede em sua carne morena. Enfim, por alguns dias você é meu, totalmente meu. Pois Ele espera por você.

       Quem eu sou? Não importa baby, sou um anjo de asas dilaceradas. Alguns me chamam infâmia, insanidade, epidemia, desgraça, peste, raiva, desgosto. Mas meu nome é Ana. E carrego comigo paixões das almas incautas dos que cruzam meu caminho. Almas que Ele escolhe e cabe a mim, arrebatá-las. Vago pelas noites de cidades que nunca dormem, entre canções e baladas desesperadas, criaturas enlevadas por substâncias tão surreais quanto os mundos de pesadelo onde vivi. O tempo não existe. De uma pequena vila em um século perdido quando degustei pela primeira vez a hóstia rubra de demônios insanos até o ultimo dia da existência da humanidade, sereia serva fiel de somente um senhor. E por Ele sou Ana, a imortal, por Ele, meus passos arderão pela eternidade. É tão breve e doce o pagamento para tão longo legado.

        Meu nome é Ana. Eu vou matar você. E prometo, você vai gostar.



 Fim
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Amor Incondicional


  
Desespero. Eu estava desesperado!
Minha esposa, apesar do que os outros diziam em contrário, amava-me. Tenho a mais absoluta certeza disso. Amava-me, sim, lá do seu jeito meio turrão de ser porque, a bem da verdade, ela não era muito dada a expressar os próprios sentimentos. Há pessoas assim em qualquer família normal que se preze. Há quem deteste discursos de aniversário, confraternizações de fim de ano, declarações de amor a qualquer hora e toda sorte de acontecimentos sociais. Elisa era assim, também. Nunca tive a oportunidade de ouvir dela o que ela sentia por mim, mas isso pouco me importava. O que se sente pelo outro, às vezes, não precisa ser traduzido em palavras, não é mesmo? Pode-se, muito bem, “sentir-se” na pele, no olhar, no abraço, no gestual de carinhos.

Elisa, minha adorada esposa, encontrava-se jogada no canto do quarto de dormir, o cômodo mais protegido de nossa casa. Queriam matá-la. A turba de desocupados, violentos, ensandecidos, insensíveis, havia tomado à frente do pequeno sobrado onde morávamos. Clamavam por vingança. A cidade achava-se em polvorosa no mais completo caos. Mas não fora só a nossa cidade que perdera-se na barbárie; a tragédia se propagara pelo país inteiro. O massacre da população que se devorava não tinha precedentes históricos conhecidos: “Zumbis”, “mortos-vivos”, “infectados”, ou sabia-se lá que nomes se atribuíam aquelas “coisas” destituídas de humanidade, vagavam sem rumo, matando e multiplicando a doença.

As pancadas na porta da frente, no intento de arrombá-la, ocorriam cadenciadas. As criaturas nojentas tinham tido a idéia de usar algum objeto pesado como aríete. Os móveis empilhados na entrada, a única entrada desimpedida por grades de ferro, cediam terreno a cada estocada. A invasão iminente me levava ao desespero, pois a preocupação não se dava por mim, mas se dava por ela: Elisa, minha adorada esposa. Não, eu não queria perdê-la. Prometera ao padre que a amaria e a respeitaria na alegria e na adversidade, conquanto tal compromisso, naquelas circunstâncias, pudesse me causar a morte. Quem ama sabe o quanto é doloroso não poder proteger a pessoa amada.

Quando os boatos chegaram a meu conhecimento de que a população, movida pelo instinto de autopreservação, estava conseguindo deter os mortos-vivos, aniquilando-os por meios que, naquele momento, pouco me interessavam, a nossa situação familiar se havia ruído irreversivelmente: Elisa fora atacada e infectada! E naquele momento terrível, digo-vos sinceramente, senhores, dilacerava-me o coração ver a pobre coitada lutando incansavelmente contra as correntes que a prendiam aos pés da pesada cama de estilo colonial, de que tanto gostava. Ela já não era a mesma pessoa. O corpo, mal coberto pelos trapos, carregado de enormes feridas abertas, o rosto esverdeado e indiferente, onde se projetavam os olhos esbranquiçados pela doença, afligiam violentamente os meus sentidos. Eu não sabia fazer outra coisa senão chorar e ficar sentado na frente dela implorando o seu retorno.

Minha Elisa, às vezes, aparecia angustiada naquele rosto transfigurado, como alguém que, se afogando num rio caudaloso, procurasse num impulso desesperado romper à superfície na busca da última golfada de ar. Estes breves momentos, não raros, levavam-me a um sentimento de aflição e impotência ainda maiores. Os olhos de minha amada surgiam nos globos esbranquiçados e conectavam-se com os meus, passando-me uma mensagem desesperadora: “me ajude, por favor.” E antes que eu pudesse dizer qualquer coisa inteligível, minha esposa se afundava naquela criatura abjeta; o horror voltava-me em ondas sucessivas a cada tentativa que ela fazia para comunicar-se comigo.

O hall de entrada, após os sucessivos golpes da turba, cedera causando o enfraquecimento da improvisada barricada de móveis. Eu não tinha muito tempo! Fui até o corredor do segundo andar e olhei para baixo. No vão da porta entreaberta, algumas cabeças nervosas, com braços invasores, tentavam empurrar o amontoado de sofás, mesas, armários e cadeiras. Uma daquelas cabeças, das que forçavam à entrada, me percebeu no alto da escada.

— Parem. – Gritou Victor, meu melhor amigo. Ele fora testemunha de minha união matrimonial com Elisa e sabia o quanto ela me era preciosa.

Todos pararam.

— Amigo, meu irmão. – Disse ele, em voz alta e emocionada, dando início ao trabalho de me convencer o que todos na cidade consideravam como o melhor para mim. - Não adianta protegê-la. Não faça isso. Elisa já morreu há muito. Esta coisa que você diz ser a sua mulher, me perdoe o áspero das palavras, não passa de um animal doente infectado e contagioso. Ela precisa ser sacrificada! Não há cura, não há salvação, não há solução na terra que a traga de volta!

Olhei-os com nojo.

— Não! Nenhum de vocês há de encostar um dedo em minha esposa enquanto eu estiver vivo.

Minha decisão irrevogável, como sabia, provocou o ódio do grupo empedernido em dar cabo da única coisa de valor para mim no plano terreno. Eles voltaram-se a arremeter esforços no sentido de forçar a entrada e já não precisavam de muito para invadir a minha casa.
Voltei para Elisa, decidido, já sabendo o que iria fazer. Não me dei o menor trabalho de refletir sobre os meus atos porque já o fizera antes, nas incontáveis horas em que estive preso aquele quarto com ela. Fui até à janela, lancei um olhar já saudoso à pequena cidade que voltava a sua normalidade, despi-me, e num movimento rápido me joguei de costas na cama.

— Venha querida. – Mal cheguei a terminar o convite e ela me atacou esfomeada.

Num único pulo, Elisa me assaltou violenta; uma das mãos me foi ao rosto forçando minha cabeça para o fundo do colchão, a outra apertou uma de minhas pernas no intento de imobilizar-me e, sem a menor indecisão, sem o menor remorso, enterrou as mandíbulas animalescas em minha barriga. Se pensam vocês, meus amigos, a quem envio este relato psicografado após minha recente morte, que me arrependi ao sentir as primeiras mordidas.  Não! A dor foi terrível, a dor foi indescritível porque não queiram sequer imaginar o que é ser devorado vivo. O sofrimento daí decorrente é algo que eu não desejaria nem para o meu pior inimigo.

Mas... no momento derradeiro, no estertor da morte, em meio àquela agonia, onde a percepção das coisas se confundem e nos enganam, pude ser agraciado na constatação de um fato que atormenta o imaginário das pessoas. Sempre me disseram que no momento final, quando o moribundo entrega-se à conformidade de seu destino, mesmo aquele que sofre a dor atroz e os delírios febris das doenças mais torturantes, um instante de lucidez lhe é dado como recompensa para despedir-se do mundo terreno. E assim o foi comigo!

Elisa devorava minhas entranhas, mastigava minha carne, quando o movimento parou de súbito! Meu corpo, torturado pela dor violenta, num repente, adormecera anestesiado e senti uma trégua no sofrimento. E a vi pela última vez. Sim, senhores, eu a vi! Ela apareceu lentamente no foco de minha visão. A fisionomia retorcida pela virulência da doença ainda lhe cobria o rosto pelo qual um dia me apaixonara. O meu sangue impregnado  nela, respingava do nariz, dos longos cabelos, da boca cheia, de onde escorria a baba do que estivesse a mastigar e no conjunto estarrecedor apresentado a mim, consegui extrair “a mensagem” do esbranquiçado medonho de seus globos oculares. Foi através deles, dos olhos, que a alma de minha adorada esposa queria dizer-me o que, apesar de eu fingir não dar importância, sempre quis ouvir: “Eu te amo”.

Aquele instante mágico, efêmero, não passou mais do que três ou quatro segundos, porque em seguida ela enterrou o rosto novamente em minhas entranhas e continuou a me devorar. No entanto, afirmo sem medo de me julgarem louco: Todo o sofrimento valeu à pena, valeu sim! Sou sabedor de que causei traumas psicológicos, noites insones e a perda da fé no divino em muitas das pessoas que invadiram nosso quarto àquela noite. Não lhes peço desculpas, de modo algum, tampouco ei de perdoá-las!

Quero que todos eles, malditos sejam, fiquem a ruminar pensamentos, a vida inteira se preciso for, para entenderem o sorriso que perpassava minha fisionomia enquanto minha adorada Elisa saciava a sua fome!


Conto De Afonso Luiz Pereira


Desespero. Eu estava desesperado!
Minha esposa, apesar do que os outros diziam em contrário, amava-me. Tenho a mais absoluta certeza disso. Amava-me, sim, lá do seu jeito meio turrão de ser porque, a bem da verdade, ela não era muito dada a expressar os próprios sentimentos. Há pessoas assim em qualquer família normal que se preze. Há quem deteste discursos de aniversário, confraternizações de fim de ano, declarações de amor a qualquer hora e toda sorte de acontecimentos sociais. Elisa era assim, também. Nunca tive a oportunidade de ouvir dela o que ela sentia por mim, mas isso pouco me importava. O que se sente pelo outro, às vezes, não precisa ser traduzido em palavras, não é mesmo? Pode-se, muito bem, “sentir-se” na pele, no olhar, no abraço, no gestual de carinhos.
Elisa, minha adorada esposa, encontrava-se jogada no canto do quarto de dormir, o cômodo mais protegido de nossa casa. Queriam matá-la. A turba de desocupados, violentos, ensandecidos, insensíveis, havia tomado à frente do pequeno sobrado onde morávamos. Clamavam por vingança. A cidade achava-se em polvorosa no mais completo caos. Mas não fora só a nossa cidade que perdera-se na barbárie; a tragédia se propagara pelo país inteiro. O massacre da população que se devorava não tinha precedentes históricos conhecidos: “Zumbis”, “mortos-vivos”, “infectados”, ou sabia-se lá que nomes se atribuíam aquelas “coisas” destituídas de humanidade, vagavam sem rumo, matando e multiplicando a doença.
As pancadas na porta da frente, no intento de arrombá-la, ocorriam cadenciadas. As criaturas nojentas tinham tido a idéia de usar algum objeto pesado como aríete. Os móveis empilhados na entrada, a única entrada desimpedida por grades de ferro, cediam terreno a cada estocada. A invasão iminente me levava ao desespero, pois a preocupação não se dava por mim, mas se dava por ela: Elisa, minha adorada esposa. Não, eu não queria perdê-la. Prometera ao padre que a amaria e a respeitaria na alegria e na adversidade, conquanto tal compromisso, naquelas circunstâncias, pudesse me causar a morte. Quem ama sabe o quanto é doloroso não poder proteger a pessoa amada.
Quando os boatos chegaram a meu conhecimento de que a população, movida pelo instinto de autopreservação, estava conseguindo deter os mortos-vivos, aniquilando-os por meios que, naquele momento, pouco me interessavam, a nossa situação familiar se havia ruído irreversivelmente: Elisa fora atacada e infectada! E naquele momento terrível, digo-vos sinceramente, senhores, dilacerava-me o coração ver a pobre coitada lutando incansavelmente contra as correntes que a prendiam aos pés da pesada cama de estilo colonial, de que tanto gostava. Ela já não era a mesma pessoa. O corpo, mal coberto pelos trapos, carregado de enormes feridas abertas, o rosto esverdeado e indiferente, onde se projetavam os olhos esbranquiçados pela doença, afligiam violentamente os meus sentidos. Eu não sabia fazer outra coisa senão chorar e ficar sentado na frente dela implorando o seu retorno.
Minha Elisa, às vezes, aparecia angustiada naquele rosto transfigurado, como alguém que, se afogando num rio caudaloso, procurasse num impulso desesperado romper à superfície na busca da última golfada de ar. Estes breves momentos, não raros, levavam-me a um sentimento de aflição e impotência ainda maiores. Os olhos de minha amada surgiam nos globos esbranquiçados e conectavam-se com os meus, passando-me uma mensagem desesperadora: “me ajude, por favor.” E antes que eu pudesse dizer qualquer coisa inteligível, minha esposa se afundava naquela criatura abjeta; o horror voltava-me em ondas sucessivas a cada tentativa que ela fazia para comunicar-se comigo.
O hall de entrada, após os sucessivos golpes da turba, cedera causando o enfraquecimento da improvisada barricada de móveis. Eu não tinha muito tempo! Fui até o corredor do segundo andar e olhei para baixo. No vão da porta entreaberta, algumas cabeças nervosas, com braços invasores, tentavam empurrar o amontoado de sofás, mesas, armários e cadeiras. Uma daquelas cabeças, das que forçavam à entrada, me percebeu no alto da escada.
— Parem. – Gritou Victor, meu melhor amigo. Ele fora testemunha de minha união matrimonial com Elisa e sabia o quanto ela me era preciosa.
Todos pararam.
— Amigo, meu irmão. – Disse ele, em voz alta e emocionada, dando início ao trabalho de me convencer o que todos na cidade consideravam como o melhor para mim. - Não adianta protegê-la. Não faça isso. Elisa já morreu há muito. Esta coisa que você diz ser a sua mulher, me perdoe o áspero das palavras, não passa de um animal doente infectado e contagioso. Ela precisa ser sacrificada! Não há cura, não há salvação, não há solução na terra que a traga de volta!
Olhei-os com nojo.
— Não! Nenhum de vocês há de encostar um dedo em minha esposa enquanto eu estiver vivo.
Minha decisão irrevogável, como sabia, provocou o ódio do grupo empedernido em dar cabo da única coisa de valor para mim no plano terreno. Eles voltaram-se a arremeter esforços no sentido de forçar a entrada e já não precisavam de muito para invadir a minha casa.
Voltei para Elisa, decidido, já sabendo o que iria fazer. Não me dei o menor trabalho de refletir sobre os meus atos porque já o fizera antes, nas incontáveis horas em que estive preso aquele quarto com ela. Fui até à janela, lancei um olhar já saudoso à pequena cidade que voltava a sua normalidade, despi-me, e num movimento rápido me joguei de costas na cama.
— Venha querida. – Mal cheguei a terminar o convite e ela me atacou esfomeada.
Num único pulo, Elisa me assaltou violenta; uma das mãos me foi ao rosto forçando minha cabeça para o fundo do colchão, a outra apertou uma de minhas pernas no intento de imobilizar-me e, sem a menor indecisão, sem o menor remorso, enterrou as mandíbulas animalescas em minha barriga. Se pensam vocês, meus amigos, a quem envio este relato psicografado após minha recente morte, que me arrependi ao sentir as primeiras mordidas. Não! A dor foi terrível, a dor foi indescritível porque não queiram sequer imaginar o que é ser devorado vivo. O sofrimento daí decorrente é algo que eu não desejaria nem para o meu pior inimigo.
Mas... no momento derradeiro, no estertor da morte, em meio àquela agonia, onde a percepção das coisas se confundem e nos enganam, pude ser agraciado na constatação de um fato que atormenta o imaginário das pessoas. Sempre me disseram que no momento final, quando o moribundo entrega-se à conformidade de seu destino, mesmo aquele que sofre a dor atroz e os delírios febris das doenças mais torturantes, um instante de lucidez lhe é dado como recompensa para despedir-se do mundo terreno. E assim o foi comigo!
Elisa devorava minhas entranhas, mastigava minha carne, quando o movimento parou de súbito! Meu corpo, torturado pela dor violenta, num repente, adormecera anestesiado e senti uma trégua no sofrimento. E a vi pela última vez. Sim, senhores, eu a vi! Ela apareceu lentamente no foco de minha visão. A fisionomia retorcida pela virulência da doença ainda lhe cobria o rosto pelo qual um dia me apaixonara. O meu sangue impregnado nela, respingava do nariz, dos longos cabelos, da boca cheia, de onde escorria a baba do que estivesse a mastigar e no conjunto estarrecedor apresentado a mim, consegui extrair “a mensagem” do esbranquiçado medonho de seus globos oculares. Foi através deles, dos olhos, que a alma de minha adorada esposa queria dizer-me o que, apesar de eu fingir não dar importância, sempre quis ouvir: “Eu te amo”.
Aquele instante mágico, efêmero, não passou mais do que três ou quatro segundos, porque em seguida ela enterrou o rosto novamente em minhas entranhas e continuou a me devorar. No entanto, afirmo sem medo de me julgarem louco: Todo o sofrimento valeu à pena, valeu sim! Sou sabedor de que causei traumas psicológicos, noites insones e a perda da fé no divino em muitas das pessoas que invadiram nosso quarto àquela noite. Não lhes peço desculpas, de modo algum, tampouco ei de perdoá-las!
Quero que todos eles, malditos sejam, fiquem a ruminar pensamentos, a vida inteira se preciso for, para entenderem o sorriso que perpassava minha fisionomia enquanto minha adorada Elisa saciava a sua fome!

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O Sétimo


Numa noite muito quente, Ronald derretia de suor em baixo daquela túnica e do capuz. Queria levanta-lo para enxugar o rosto, mas Joana, sua esposa, o impedia segurando-o pelo braço a cada movimento involuntário de leva-lo à face.

Agora era tarde, pensaram simultaneamente, enquanto olhavam em volta, estavam reunidos em um círculo em uma clareira no meio da floresta densa, com outras cinco pessoas cada uma segurava uma vela. Formavam a união das Sombras. No centro deste círculo, uma fogueira, que iluminava mal e tornava tudo muito sinistro.

– Irmã Joana, chegou o momento, ao lado da fogueira, dois membros da seita estenderam um colchonete, para aproveitarem aquela luz.

Joana olhou para Ronald, que segurou as mãos dela, e a levou até o colchonete. Ela apertou a mão do marido, muito forte. Já não tinha mais certeza se ainda queria aquilo.

Ronald deu um beijo na testa, por sobre o capuz da esposa.

– Irmão, disse o homem que parecia ser o sacerdote da seita, agora nascerá o filho das trevas, o sétimo filho desta família, que aceitou o mais desafio de suas vidas: seguir o verdadeiro Mestre. O Mestre das Sombras!

Joana voltou a sentir fortes contrações, tão fortes quanto as que sentira à tarde, pouco antes de ligarem para o sacerdote avisando do ocorrido, confirmando a reunião para aquele local e horário.

Deitaram-na no colchonete. Ela, ainda com o capuz, chorava desesperada, de tanta dor. Doara todos os seus outros seis filhos, mas estranhamente, lá no fundo, apesar de ser muito fria de bons sentimentos, sentia amor por esta criança.

Depois de algumas horas, a criança nasceu, era um menino. E com o sangue da mãe e o fogo, fizeram o pacto das trevas.

Se algum dia os pais temeram o poder do fogo, agora era tarde, e tudo se transformara em verdade. Logo depois do batismo das trevas, a criança já sabia qual o seu destino: destruir essa bobagem do bem!

Agora o caminho deve ser seguido. Ele é o sétimo, o escolhido! E ele sente. A criança nasceu e vive. Vive para o mal. Pertence ao mal e é o mal!

Um Conto de Celly Borges
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A Dama do Rio




O casco da embarcação elevava-se no ar e caía com violência sobre as águas escuras do rio. A tempestade pegara a todos de surpresa, em apenas alguns minutos o nível das águas havia subido como há muito não era visto em toda a região. Os pescadores agarravam-se como podiam nas cordas e ganchos fincados na madeira envelhecida que revestia toda a nave. Àquela altura já suscitavam dúvidas se haveria mais água vinda do céu, correndo pelo leito, ou dentro do próprio barco. Embora não houvesse qualquer vestígio de rochas naquele percurso, um choque violento e repentino atingiu a parte inferior da embarcação despedaçando por completo toda a sua estrutura. No exato instante em que via os companheiros voando pelos ares, o comandante pôde notar um estranho brilho submerso refletido pelos lampiões que caíam na água.

Ele sentia seu corpo ser tragado pelas profundezas sem que conseguisse reagir, por mais que fizesse força. Lutava para evitar que as impiedosas águas preenchessem seus pulmões. Não conseguia enxergar quase nada, tudo estava turvo e escuro, mas ainda assim, podia jurar ter visto vários de seus amigos serem enlaçados por algo brilhante enquanto travavam uma violenta luta pela vida. O comandante buscava fazer jus à sua reputação, mas nem mesmo com um poder sobrenatural julgava ser capaz de resistir ao poder da natureza. Quase perdendo os sentidos, sentiu seu corpo ser elevado por algo que surgia das profundezas, já não sabia se aquilo tudo era realidade, ou se não passava de um delírio causado pela rigidez da situação.

O ar entrou por suas narinas de forma violenta, chegava a queimar-lhe as mucosas, o homem estava totalmente entregue, não tinha o menor domínio sobre si mesmo. Seus olhos reviravam a procura de algo que lhes confortassem, mas tudo o que viam era o seu instrumento de trabalho sendo arrastado, aos pedaços, pelos braços dominantes do rio, e as pesadas gotas que caíam do céu tomado pelas trevas. Percebia seu corpo ser levado como uma pluma sinuosa sobre o espelho d’água, não sabia como esse fato era possível, mas não insistia em tentar buscar uma explicação.

Seus músculos não tinham mais forças e sua mente logo desistiria de manter-se acesa, perder os sentidos seria questão de tempo, e assim aconteceu. Entorpecido, embarcou numa viagem escura, onde não estava no comando, não sabia onde as curvas traiçoeiras poderiam levar.

O pescador foi encontrado numa das margens na manhã seguinte. Ele estava desacordado, e assim permaneceria, em um estado profundo de letargia, fechado para a realidade, mas vivendo internamente num mundo de sonhos desconexos e sem sentido, de onde somente sua força interna poderia tirá-lo.

As águas calmas não davam sinais de serem as mesmas tomadas pela fúria incessante da noite anterior. Alguns ribeirinhos arrastavam uma rede pelo rio em busca de alimento, enquanto crianças corriam por uma das margens. Cena normal e corriqueira se não fossem os murmurinhos no vilarejo por conta do acidente fatal com o pesqueiro. Apesar do leito barrento, a farta luminosidade do dia aberto permitia uma razoável visibilidade aos homens, no entanto, naquele dia, talvez eles não desejassem enxergar tanto.

O mais franzino deles foi o que viu primeiro, um rastro sinuoso nas águas intensificado por um brilho que aumentava com o contato dos raios do sol. O reflexo feriu-lhe os olhos, fazendo com que largasse o apoio da rede e levasse as mãos ao rosto, o gesto fora acompanhado por um grito aterrador. Os demais demoraram a entender o que acontecia com o companheiro, só perceberam que havia algo errado quando o próprio erro em pessoa surgiu da parte mais funda do rio, enlaçando o corpo frágil do rapaz que gritava. A voz do pobre homem foi calada. Seu corpo desapareceu por completo do campo de visão dos amigos, em seu lugar, surgiu uma mancha escura e perturbadora.

O pânico tomou conta do resto do grupo, com saltos e de forma atabalhoada, os pescadores tentavam escapar da ameaça, mas o que se movia ali era detentor de muito mais desenvoltura, e não fora difícil para ele subjugar um a um da forma que quis. Os corpos eram arremessados pelo ar e chocavam-se violentamente contra as águas, para em seguida desaparecerem e ressurgirem em pedaços. O leito tornava-se rubro e agitado. As crianças pararam o que estavam fazendo e passaram, curiosas, a observar a estranha pescaria dos mais velhos.

Uma onda crescente em forma de delta seguia velozmente em direção a elas, a maioria correu, mas uma delas ficou. Estava praticamente hipnotizada pelo movimento incomum das águas. Os gritos e a correria dos pequenos chamaram a atenção de uma mulher que trançava palha dentro de casa. Pelo vão da janela, ela visualizou a menina parada na margem e uma seta nas águas que rumava em sua direção. Com a pressa envolvendo-lhe os pés, ela correu o máximo que pôde para alcançar a garota, não era preciso entender o que se passava para saber que aquela vida estava em risco.

A distância lhe fora favorável, um abraço urgente quebrou a hipnose da menina, mas ela ainda estava com os tornozelos no inferno e isso já seria o suficiente.

Os olhos da pequena presenciaram a cabeça de sua salvadora abandonar violentamente o corpo com uma só investida do desconhecido. Ela sabia que seria a próxima, no entanto, o ataque fatal de seu algoz fora repelido, e ela apenas acompanhou a boca escancarada da criatura desaparecendo nas águas manchadas. O corpo decapitado fora levado junto, agarrado às armas exibidas e que estavam prontas para lhe fazer mal. Suas lágrimas diluíram-se no rio, levando inocência e pureza àquele lugar maldito.

Quase no mesmo instante, no pequeno hospital da cidade, o súbito despertar do comandante do barco naufragado surpreendia o solitário médico local, o qual, prudentemente, já tratava da transferência do enfermo para as instalações da capital. No entanto, algo fazia brotar um sentimento de preocupação no peito do doutor. Embora o homem demonstrasse sinais claros de recuperação, seu olhar perturbadoramente vidrado insistia em dizer o contrário. Inutilmente, o médico tentou manter o pescador sob seus cuidados, mas a determinação do homem parecia transmutar-se em força, e, por conta disso, tentar mantê-lo internado tornou-se algo impossível. Uma vez livre, o velho comandante ganhou as ruas de barro do vilarejo.

Enquanto caminhava perdido em pensamentos, o pescador permanecia alheio à movimentação que surgia junto a margem do rio. Na verdade, lhe faltava um raciocínio coerente, parecia que sua memória recente havia sido apagada. Ainda assim, ele sabia que algo não estava certo, embora ele estivesse distante das pessoas que se aglomeravam diante das águas, ele compartilhava, mesmo que de modo inconsciente, das mesmas aflições que os atormentavam. Ele e os ribeirinhos tinham plena convicção de que algo fora da normalidade habitava aquele espaço submerso.

O povo estava horrorizado com o relato da pobre garotinha. Por obra de um verdadeiro milagre, ela conseguira ter um destino diferente de todos aqueles que haviam sido tocados pelas águas do rio naquela manhã.

De seus lábios brotavam os contornos de uma criatura inacreditável, inconcebível até mesmo para uma região tão suscetível ao extraordinário. Os líderes locais não conseguiam se conter diante da possibilidade de algo tão demoníaco macular o que lhes era sagrado, o local de onde colhiam o sustento das famílias.

Não tardou para que os barcos de diferentes tamanhos e cores ocupassem cada metro do espelho do rio. Arpões e flechas de bambu riscavam o ar e espirravam água mediante o menor movimento suspeito no leito turvo.

Eles subiram e desceram o curso d’água por várias vezes, durante todo o dia, sem que conseguissem encontrar qualquer sinal da criatura que ofendia a própria natureza simplesmente por existir. Ao cair da noite, com os barcos atracados, os homens voltavam à terra com o peso da frustração sobre os ombros.

Esperando a comitiva, no centro do vilarejo, estava a mais velha das moradoras. Ela poderia ser considerada uma local porque habitava as cercanias do pequeno povoado, embora não fixasse moradia entre os demais. Ela descendia dos índios, circulava pela mata e raramente era vista entre os habitantes, apesar de que todos tinham plena consciência a respeito da presença dos seus olhos vigilantes sobre a região. Ela impunha muito respeito, todos faziam questão de ouvir o que ela tinha a dizer, mesmo porque, dificilmente o som de sua voz se fazia ecoar...

As palavras proferidas pelo timbre rouco saíram arrastadas, soando quase como uma lamento. Elas tratavam de um espírito maligno, perverso em essência, que não se furtava em fazer valer do corpo que ostentava para disseminar o mal e causar dor, tanto física quanto emocional. A criatura se arrastava pela floresta imitando o curso dos rios, embora os antigos dissessem que eram os rios que assumiam sua forma.

Uma vez instalada numa área, o ser não descansaria até arruinar a alma de cada um dos seus habitantes, pois ele próprio não tinha sossego por odiar a própria forma e, por conta disso, invejar as linhas daqueles que desejava consumir.

Acuada, a criatura se tornava furtiva, e ostentar felicidade seria a melhor maneira de atraí-la. Assim, no alto de sua sabedoria, a velha índia ordenava que se fizesse um grande festival, uma homenagem à fartura das águas.

E assim foi feito. Todos os moradores e, até mesmo, representantes do povoado vizinho juntaram-se na margem do rio, ao redor do calor de uma grande fogueira, a lua cheia emprestava seu esplendor à comemoração. Mesmo temerosos, os ribeirinhos festejavam. Toda a angústia que lhes consumia ficava restrita ao interior de suas almas. Nem mesmo uma simples ponta de aflição poderia transparecer, caso contrário, a fera das águas não surgiria.

O velho pescador não conseguia se juntar aos demais, seu trauma parecia demasiadamente profundo para que pudesse simular alegria. Ele conseguia se lembrar de estar entre os braços da morte, do terror estampado no rosto de cada um dos seus companheiros. Porém, a lembrança da salvação era tão turva quanto as águas barrentas do rio. Ele tentava, mas só lembrava de estar flutuando antes de perder os sentidos...

Apesar da mente nublada, ele foi o primeiro a perceber as estranhas ondulações na escuridão das águas. Uma garota, não pertencente ao povoado, provavelmente, pois suas feições não foram de imediato reconhecidas pelo pescador, dançava inadvertidamente junto à margem. A jovem, que demonstrara incontido entusiasmo durante toda a noite, não fazia a menor idéia do perigo crescente às suas costas. Antevendo a situação, o homem iniciou uma desabalada carreira rumo ao terreno lodoso. Entretanto, seus movimentos foram replicados em intensidade pelos golpes das águas, os quais, de súbito tornaram-se uma imensa parede em forma de onda. A música cessou, a dança foi interrompida, a atenção de todos estava voltada para o rio, mas ninguém conseguiu se mover quando a imensa figura surgiu em meio ao turbilhão de fúria.

A criatura de escamas negras e reluzentes projetou-se com incomparável velocidade sobre a mulher, o corpo frágil foi rapidamente envolvido pelos contornos esguios da fera. O pescador, o único a esboçar um mínimo de reação diante dos fatos, tomou a espingarda de um dos estáticos moradores, chegando a derrubá-lo com o ato. O homem, decidido a por um fim na existência da besta, enlaçou com convicção o cano duplo da arma e fez mira. A boca escancarada da criatura demonstrava plena capacidade para engolir a cabeça da garota com uma só investida, e tentou, de fato, fazê-lo. Mas o chumbo rompeu o ar no instante crucial, acertando, em cheio, o vão preenchido pelos aguçados dentes.

Imediatamente, a pressão exercida pelo corpo cilíndrico foi atenuada de tal forma que a garota conseguiu escapar. Mas o demônio ainda resistia. O movimento de algumas escamas ainda era perceptível. Então, o pescador se aproximou do assassino de seus companheiros. “Na cabeça, acerte uma lâmina na cabeça!” Gritava a mulher, em evidente desespero. Atendendo aos apelos, ele desembainhou sua velha, porém afiada, faca de pesca. A cabeça da fera balançava perigosamente, embora de modo involuntário. O homem buscou a lembrança dos amigos sendo arrastados para o fundo das águas, o desejo de vingança lhe preencheu de força e determinação. Esperando o momento exato, ele golpeou com certeza de sucesso a área localizada um pouco atrás da monstruosa cabeça. De imediato a criatura tombou. Do ferimento adornado pela lâmina, um líquido espesso e negro, semelhante ao que era expelido pela boca da fera, ponto atingido pelo chumbo, começou a verter. No entanto, poucos segundos se passaram para que a tonalidade mudasse de cor. Nos dois pontos, o vermelho intenso passou a dominar. O inimigo fora finalmente vencido.

Os ribeirinhos explodiram em gritos de comemoração. A jovem parecia a mais entusiasmada, e, em aparente sinal de gratidão, tomou seu salvador em um abraço. Sem dizer uma só palavra, ela encostou seu rosto na face cansada do pescador. “Não!” Gritou a velha índia, surgindo de um ponto desconhecido. Sua voz não soava como um sussurro desta vez, pelo contrario, era firme e perfeitamente compreensível. Mas, o comandante da embarcação despedaçada não conseguiu ouvi-la. Seus olhos estavam vidrados numa imagem que o fez lembrar de tudo. Entorpecido, ele sentiu a língua bifurcada e áspera da mulher deslizando, de forma sinuosa, sobre seu rosto. Não havia mais névoa em sua mente, tudo estava claro. Fora uma gigantesca serpente negra que o livrara da morte certa no rio, uma criatura tão semelhante a que estava estirada no chão, com o sangue a esvair dos ferimentos por ele causados.

A besta assassina não era aquela. A face da morte era alva como a lua no céu, emitia um brilho prateado enquanto matava, cintilava enquanto devorava a carne humana. Ele tinha visto, jurava que tinha visto, os olhos malditos do demônio enquanto flutuava nas águas sob a proteção da criatura de negras escamas. O vazio que ele presenciou naqueles olhos estava ali, diante dele, refletido no semblante frio da mulher que o apertava cada vez mais com um abraço firme.

A índia tentava invocar sua antiga força, mas seu corpo já não respondia aos comandos com a mesma desenvoltura de outrora. A coragem dos moradores parecia diluir-se diante da incapacidade demonstrada por sua inspiradora. O prisioneiro urrava de dor. Ele sentia sua caixa torácica sendo esmagada pela força da mulher, o ar começava a lhe faltar aos pulmões. Quando achava que a morte era inevitável, ela o soltou. Mas seu horror estava apenas começando. Com incrível habilidade, a jovem se livrou das vestimentas, e com as mãos unidas junto ao esterno, começou a rasgar a própria pele. De dentro do seu corpo surgiu o revestimento pálido e reluzente de uma cobra, a qual, de maneira inexplicável, parecia crescer diante dos incrédulos moradores.

Como se refeitos de um transe, os locais partiram em direção a ela, alguns recolhiam paus e pedras como armas, outros se municiavam com rifles e facas. No entanto, já não havia tempo para retaliação, a enorme serpente branca ganhou as águas escuras com extrema perícia, mas não sem antes arrastar o corpo triturado, e pronto para ser engolido, do pobre pescador. Tiros foram disparados a esmo. As águas se tornaram indomáveis por alguns instantes, mas logo foram tocadas pela placidez usual.

Vencidos, enganados e humilhados, os ribeirinhos tentavam encontrar forças. As palavras da velha índia ecoavam com maior intensidade na cabeça de cada um deles; o demônio não descansaria enquanto não consumisse a existência de cada habitante do local por ele escolhido para viver. O que eles ainda não compreendiam, era que a criatura não agia de modo desordenado, ela não gostava de deixar um trabalho inacabado. Assim, quando jatos d’água foram lançados ao ar com violência, espalhando o pânico entre todos; um brilho metálico arrastou uma garotinha para as profundezas do rio. Desta forma, a certeza de que ninguém poderia sobreviver começou a brotar no coração daquelas pessoas.




* Texto inspirado na Lenda Cobra Norato e Maria Caninana. Conheça o Folclore Nacional, você vai se surpreender.


Um conto de Flávio de Souza
 

Dezembro 13 © Copyright 2010

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