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A Vingança do Ghoul



Escrito por Ramon Bacelar



   “A cesta de papéis é a melhor amiga do escritor.”- Isaac Bashevis Singer

...e deferido o último golpe, a besta pálida estrebuchou e caiu. Estava morta.

                                         FI


Com mãos trêmulas de satisfação, Lovepoe Whitewood pressionou a tecla M da antiga Remington 12 e sorriu de felicidade. Não podia segurar seu contentamento, A Vingança do Ghoul estava finalizado: fi-na-li-za-do. Pronto, Prontinho da Silva!! Pronto... para mofar em uma gaveta fedorenta a naftalina e cocô de barata.

Apoiou-se no queixo num gesto pensativo e mais uma vez afogou-se em sua realidade tediosa. Não era um bom escritor: não tinha o vocabulário do Lovecraft e a verve poético-melancólica de um Poe; muito menos a economia de efeito do M.R. James. O sense of place do Algernon Blackwood lhe zombava das selvas canadenses, enquanto que a sutileza e finura psicológica do Robert Aickman e Walter de La Mare davam-lhe língua de um ciclópico abismo instransponível. Não tinha grana para ir ao País de Outubro do Bradbury, nem conhecia o caminho. Jamais resvalava em excessos pós-modernos porque sua escrita era tão magra quanto sua geladeira e conta bancária. Suspirou pesarosamente e a realidade de sua condição acenou-lhe do abismo do Kafka (iuhúúú, misery loves company!): Não passava de um sub-Stephen King em crise de abstinência porcamente traduzido (comenta-se que se o comparassem com a Stephanie Meyer cairia num vazio depressivo). Mas nada disso importava; levantou os braços e gritou: The Vengeance of the Ghoul is mine e ninguém tasca!!!

Num misto de decepção e felicidade apanhou o manuscrito; acariciou-o como um filhote de gambá, beijou-o como se beijasse a boca da desdentada Berenice e de sua superfície amarelada, milhares de ácaros, como em uma insana corrida de espermas, penetraram nas narinas cabeludas. Abraçado ao manuscrito repetiu: é meu e ninguém tasca... Ninguém.


As 23:59 min decidiu não deitar; queria começar a revisão, precisava de um café. Da moldura vitoriana no corredor que dava para a cozinha, o sorriso zombeteiro da Mary Shelley o atormentava num tom de chacota pela sua colcha de retalhos sem o menor senso de ritmo narrativo batizado de A Vingança do Ghoul: O verdadeiro Monstro de Frankenstein; a dois passos da cozinha o badalo da meia noite o arremessou com nova energia ao objetivo.
Na ânsia por um café, não notou a luz acesa, mas antes de alcançar o umbral deu de cara com um intruso de charuto na boca saudando-o com sua caneca do Bela Lugosi!

-Boa noite papi. Vai um cafezinho aí? Descafeinado e saudável para hipertensos como tú... acabou de sair do fogo.

Com olhos esbugalhadamente surpresos pela figura baixa, obesa e palidamente grotesca o encarando, nauseado pelo odor de bosta de gato que o charuto exalava...

— O que significa isso?! Quem é você?!! - berrou com um misto de surpresa e indignação.

— Ora, ora papi, como não sabe?!

Com um súbito clarão de reconhecimento, Lovepoe se deu conta do seu estado de fadiga mental: de tanto dialogar com sua criatura no papel...

— E aí, vai dar um grau em meu visual?- perguntou o Ghoul.

— Quê?

— Progenitor desnaturado.

-Mas...

— Medíocre!! - esbravejou numa explosão de fúria e ódio virulento - Minhas orelhas são pontudas, meu nariz e boca macilentos; criou-me como um salva-vidas de aquário, um pintor de rodapé e... já não basta... já, já...além do mais... - suava e tremia de ódio dos pés a cabeça- Minha bunda é sebosa e caída PORRAAAAA !!!!!

— Mas você é um Ghoul, filhotão!! - respondeu por puro impulso.

— Um genérico e pouco imaginativo Ghoul. Produto de uma imaginação tosca, preguiçosa e repetitiva; afogada na mesmice e mediocridade, assombrada pelos espíritos obsessores do conservadorismo estilístico e repetição temática; incapaz de nada criar além de meros adolescentezinhos Kingeanos, vampirinhos chorões Riceanos e pastiches LOVECRAFTEANOS!! Você é ruim demais!!! - esbravejou.

Das profundezas do seu ser, recolheu os farrapos de auto-estima e levantou a cabeça.

— Seu monstrinho de merda!! - berrou com ânimo renovado.

— Sou mesmo; criado a sua imagem e semelhança, merdão. – apontou o indicador - Caso contrário não estaria aqui... A culpa é sua! – continuou - Só um artista do seu nível para criar um Ghoul sem apetite. Vou virar vegetariano!!

— Assim você me ofende filhão. - mais um golpe deferido em sua já baixíssima auto-estima.

— Já não basta me confinar em uma existência tediosa; em um mundo frágil, poeirento e amarelado. – espirrou - Ácaro, poeira, tosse e asma para dar com o pau... E ainda por cima me mata no final!!

Num acesso de ódio cuspiu o charuto e arrebentou a caneca no ladrilho.

— Filhote, filhote, todos tem defeitos... apesar dos teus... Eu te amo!!

— Caralho... Meu Deus. - abaixou a cabeça - Tá pensando que é novela mexicana imbecil!! – gargalhou. – Se pelo menos fosse o Chaves...

Pegou um estilhaço de cerâmica e apontou para a garganta.

— Você...- o silêncio preencheu os espaços vazios – Vo-cê...

— Sim! Faço sim!!- gotas de suor brotaram como medos úmidos. - Vou revisar agora mesmo!

-Revisar?? – pressionou o pescoço - Ou você o reescreve i-ma-gi-na-ti-va-men-te; liberte-me deste maldito status de um insignificante e humilhante borrão de tinta, cure minha asma e me dê uma existência digna de um comedor de detritos humanos...

Sentiu uma gota de sangue quente desbravar seu peito esquelético.


                                                                               ***


Dedos famintos, ansiedade borbulhante, medo avassalador, Lovepoe noite após noite encarava as teclas barulhentas e escrevia, escrevia, escrevia...

Sua criação não mais iria lhe atormentar, não só o ressuscitou como decidiu colocá-lo como protagonista de uma série cujo esboço, A Vingança do Ghoul II: A Missão, já lhe acenava das profundezas de sua renovada criatividade. Visualizou-o escalando a lista de best sellers ao lado do Paulo Coelho e Augusto Cury; se viu fechando contrato para a coleção de bancas de jornal, do ladinho de Como Ser Feliz Fazendo Sexo 24 Por Dia Sem Tirar e As Melhores Receitas da Ofélia. Curvaria às pressões editoriais para uma décima primeira parte. Reescreveria parágrafos e amenizaria o tom para torná-lo mais palatável aos paladares menos sofisticados; cederia à tentação de colocar na capa um mago encapuzado ou um adolescente míope, mesmo que estes nada tenham a ver com o enredo, ou então modificaria a trama para combinar com a ideia da luxuosa sobrecapa laminada em altíssimo relevo; esvaziaria os bolsos de colecionadores abonados, nerds tapados e estetas iletrados com inúteis edições limitadas em capas de couro e verbosidade redundante; massagearia o ego mensalmente fazendo charminho, negando autógrafos e entrevistas; arrotaria Cheval Blanc e Heidsiek safra 1907 em encontros e convenções; encheria a bola dos fãs com blogs estilosos e frases de efeito. Optaria até mesmo por um ghost-writer em dias de ociosidade criativa e pura preguiça: Dinheiro demais né ??

Levantou-se e foi ao banheiro tirar a água do joelho (aquela aliviante mijadinha); em meio ao borbulho do cano de descarga fedorento, outro som, não menos incômodo e ainda mais nauseabundo incomodou-o, mas não identificou; provavelmente um inquilino meditando no vaso sanitário ou filosofando com a cerâmica carcomida.


Sentou-se e novamente ouviu o rugido; desta vez teve certeza que sua fonte não tinha origem no universo fecal. Era um grito de tormento misturado a ansiedade; chutou a lixeira e estraçalhou a gaveta enquanto esmurrava a cabeça repetidamente; queria ir contra a parede, sangrá-la, sabia que estava preso à mente e sua infinita capacidade de criar ilusões. Sabia que não passava de um mero mecanismo gerador de alucinações, para protegê-lo de uma realidade mesquinha e burocrática ou arremessá-lo numa existência ainda mais caótica e tormentosa; suspirou profundamente, mas antes que um grito de desespero o impulsionasse a esmagá-la em mil pedaços, o mesmo mecanismo ilusório enviou-lhe outro impulso sensorial: sentiu um toque frio na nuca e do limite da visão vislumbrou uma unha suja explorando sua gengiva.

— Papi?

A respiração saiu irregular, sentiu a energia vital se esvair e emudeceu.

— Que pena papi.

— Está pronto! Prontinho!! Mais uma revisão... Umazinha! Vou transformá-lo em celebridade imortal, ao gosto do freguês hehehe... - olhou-o com ternura - Fará parte de uma série com contrato atrelado a Hollywood e o escambau; já tenho a segunda parte esboçada filhote!

— Tssss, tsss, que pena... – espirrou - ...na vida as coisas quase nunca saem como planejado. Admiro seu esforço e dedicação... - escarrou -...dois meses a fio escrevendo e revisando-o para agradar o filhão complexado... Mas ainda estou asmático e resfriado, minha bunda continua sebosa e caída, e ainda por cima... papi, estou com gases!

Sentiu uma pressão na garganta; a unha penetrando seu pomo de adão, suas órbitas como dois sapos saltitantes: o grito estrangulado retornou num eco de socorro e...

E eu, Ramon Bacelar, escritor medíocre de escrita magra, vocabulário limitado e imaginação opaca, afogado em minha realidade tediosa... Sinto um toque frio na nuca, olho para o lado... dedos,  unha... turvo... n-não!...nã ..n. ... ... ... ... ... ... ...

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A Mascaração (conto-delírio)






Estridentes, cacofônicos, tumultuosos, assim são os sons que envolvem os foliões venezianos na Temporada das Alegrias e Encantos Pueris, assim respira a Praça São Marcos em época de carnaval.
 Escondido no escuro solitário de uma gôndola emborcada, um anão respira fundo, olha para os lados mas antes de decidir a direção, suspende o pescoço estudando o cenário com a cautela de um ourives medieval: solitários embriagados de movimentos convulsivos esfacelam nas calçadas como fantoches desconexos, cavaleiros plumosos em cavalos imponentes escoltam damas emplumadas com a leveza de pássaros sonambúlicos, máscaras de gesso mascarando mulherengos incuráveis racham sob o grito e o peso de desejos reprimidos; e fora do seu campo de visão na Ponte dos Suspiros, escorada no parapeito como um manequim desarticulado, uma melancolia sustentada em duas pernas, carne e rugas, borra uma máscara de spray cinza-prata com lágrimas que jorram de cílios postiços como fontes de água clara: a idosa enxuga o rosto, vasculha o cenário, e em meio a danças, beijos, sorrisos e outras mascarações, grita para o policial: o Pierrot mascarado, é ELE!!
O anão agarra a bolsa e salta para outra gôndola estacionada como se sua vida dependesse disso.
Um ruído indistinto fere os ouvidos, mas antes de assimilá-lo por completo, um grito igualmente abafado porém mais distinto, o impulsiona para a calçada:
-PEGA LADRÃO!
Por entre plumas, pernas e danças o Pierrot pequenino serpenteia pela colméia humana como um pássaro na agonia do escape, enquanto um mosaico de botas, penas, fivelas e adereços confundem sua visão pressionando sua máscara de gesso, seu casulo de mascaramento e proteção, ferindo-a com cortes diagonais e lacerações com jorros de sangue branco; suspende o pescoço com movimentos cautelosos, mas antes que as retinas absorvam a totalidade dos detalhes, uma rede branca de máscaras e fendas captura sua visão e o aprisiona em olhos de abismo e sorrisos de gesso, encarando-o de cima como olhares curiosos refletidos em um espelho invertido:
- Pierrozinho pequenino da mamãe.- Grita a columbina alcoolizada.
-Coisinha mascarada do titio.- Sussurra no ouvido uma caricatura de ocultação.
-Comidinha pros meus filhotinhos, nhaaammm!!! – Gralha um mascaramento de corvo.
-Um...dois...três: pintorzinho de rodapé, baixotinho do pa-pai!!! Ahahahahah!!!- Declamam em uníssono, vozes de desprezo e preconceito em mascaramentos de rotina e naturalidade.
Fecha os olhos,
Ahahahahah!!!
Tampa os ouvidos,
Ahahahahah!!!
mas a estridência da chacota é maior que suas mãozinhas de gato nas orelhas,
Ahahahahah!!!
 O anão enrubesce em delírios de cautela e asfixia: abaixa a cabeça, respira fundo e quando as risadas sufocam pela marcha alegre do festejo, olha para os lados e nota a calçada alargar e ceder espaço para um novo fluxo de passos, pressões, olhares e novas mascarações.
“Preciso terminar o que...Sinto-me como...”
O pensamento sufoca por uma vaga de tremedeiras e calafrios que o envolve como uma manta de vapor frio, sente o corpo enfraquecer e a energia esvair.
“Que...Quem...”
Passa os dedos pela máscara trêmula sentindo as rachaduras alargarem e fundirem-se às fendas do nariz, olhos e orelhas.
“Quem... S...”
O corpo estremece no mesmo instante que gotas de sangue branco umedecem sua identidade em ruínas, escapando pelas fendas e rachaduras da face-que-não-é.
“...Sou”
O anão estremece e agoniza em meio a mascaramentos indiferentes de olhares dissimulados e risadas estridentes; fecha os punhos, enrijece as pernas e com um último resquício de energia arranca a ruína de gesso mascarando sua face.
“...Eu?”
Como um último suspiro agonizante, toca na antiga cicatriz, mas antes da escuridão clamar por território, sente uma descarga de energia invadir o seu espírito e penetrar em suas narinas como um bálsamo revigorante: o anão libera os pulmões expirando refluxos de alívio e leveza, e uma antes tímida e humana identidade privada agora domina sua persona pública, triunfa em sua máscara de carne.
“..simplesmente sou.”
Tateia sua face, pressiona a memória: “Casa, filhos, amigos, espelhos...”, lamenta sua vida, seus atos, roubos e mascarações.
“...não preciso terminar o que comecei.”
Respira fundo sentindo as curvas e textura de sua face; avalia a aderência do seu casulo de carne: a elasticidade da boca, a rigidez das bochechas, os sulcos da testa, e com a promessa de uma vida honesta e mascaramentos de outra natureza, arremessa a bolsa furtada no canal como se arrancasse uma máscara de auto-engano.
“Não preciso.”
O anão avalia as escolhas, pesa as possibilidades e decide ir em direção à feira pela área sul, distante dos sons, risos e desprezos ocultados em gessos multicores, mas seu parco senso de alerta não lhe atenta para o fato que sua estatura denuncia mais do que mascara e que sua máscara, para seus inimigos, nada mais é que uma ingênua tentativa de ocultação: o avesso do avesso.

                                                                     ***
Os sons distantes do festejo resvalam nas barracas e retornam aos ouvidos como indistintos farrapos sonoros, enquanto anúncios estridentes de vendedores ambulantes circulam pela feira como vampiros à procura de saciação; o anão absorve o cenário multicor como um artista obsessivo sugado em sua própria criação: uma fileira de tendas aqui, uma aglomeração de barracas ali, uma exposição de pinturas acolá, e da periferia da visão, ferindo o horizonte como uma chaga arquitetônica, uma estrutura angular semelhante a uma asa de morcego suga a atenção e o impulsiona ao seu objetivo: anda, suspira, corre, para, avalia... Encara a estrutura e estaca: olha para olhos como fendas, fendas como cavidades nasais, orelhas como asas e antes de ser sugado para dentro por uma boca abismal, percebe que a estrutura não passa de uma tenda em forma de máscara (ou seria uma máscara ocultada como tenda?).
Sugado para o casulo de incerteza e escuridão, para a essência da mascaração que era o interior da tenda, o anão apalpa as laterais à procura de apoio, mas a pressão exercida sobre a lona força um zíper que permite a entrada de um feixe de luminosidade natural que desmarcara a ocultação: cercando-o como tentações inconscientes, um semicírculo de prateleiras e estantes cede sobre o peso de perucas, maquiagens e máscaras...mascaramentos de estilo e feitura delicados. O anão, como se intoxicado pelo moribundo passado recente, é atraído para a mascaração como uma espiral imantada: águias, palhaços, columbinas, rufiões e outras frustradas tentativas de representações faciais o encaram com bocas de imã e olhares de tentação, mas o seu renovado senso de identidade lhe alerta para o perigo das escolhas: o passado que não é passado.
O anão suspende a cabeça e em um gesto decidido gira o corpo em direção à saída, mas antes do segundo passo sente algo flácido nos pés como uma bexiga murcha; corre para fora e examina o objeto no mesmo instante que uma lembrança petrifica suas órbitas e lhe mostra a realidade de sua condição: em suas mãos um espelho murcho, sua antiga máscara de carne sem a cicatriz facial que lhe serviu como passaporte para uma vida de roubos e mascaramentos; ao seu redor, símbolos de uma vida passada acendem uma recordação atentando-lhe para o fato que no centro da tenda mascarada, no âmago da mascaração, um dia sua face foi cortada em um rito de passagem para o crime, e no chão, esparramada como uma arraia flácida, a máscara de pele e músculos do seu antigo eu encarava melancolicamente a cicatriz brilhosa em sua nova face que pulsava convulsivamente como um criminoso coração das trevas.
O anão suspira e sente, mais uma vez, a energia esvair; toca na ferida facial, seu crime de carne, respira fundo e antes que sua antiga face lhe escape pelos dedos, agarra-a firme, suspende o pescoço e a coloca por sobre a cicatriz como uma lápide do seu passado de enganos e mascaramentos.
Abre os braços, respira fundo e com a leveza de uma pena flutuante, retorna para casa, para os filhos, para uma nova vida de desejos, acertos, conquistas e talvez...novas mascarações.


Um Conto de Ramon Bacelar
 

Dezembro 13 © Copyright 2010

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