A Negociata

quarta-feira, março 23




- Qual o valor de seu sonho?
- Isso mesmo. Seu sonho! Quanto estaria disposto a pagar por ele?
- Todos os homens têm um preço. Todo sonho é digno de algum valor.
- Quanto estaria disposto a pagar pelo seu?
- Eu posso fazer isso por você. Torná-lo realidade... Eu posso!
Fred despertou com um sobressalto. Outra vez o mesmo pesadelo. A mesma voz, as mesmas palavras, a mesma pergunta... Qual o valor de um sonho?
Ele se levantou, caminhou até a pia do banheiro e com as mãos em formato de concha arremessou uma boa quantidade de água gelada contra seu rosto. Parou por breves segundos fitando o espelho. Fitando o cansaço impresso em sua face. Seus olhos fundos de noites mal dormidas... Há quanto tempo eu não sei o quê é sonhar?
Havia semanas, meses talvez, que Fred não conseguia ter uma única noite tranqüila de sono. Uma única noite em que na imensidão obscura de seus olhos cerrados aquele incógnito sujeito não surgia trazendo nos lábios finos um malicioso sorriso e a mesma oferta estranha... Quanto estaria disposto a pagar por seu sonho?
Fred encontrava-se à beira da loucura. Já não era mais senhor de seus pensamentos. Já não conseguia mais distinguir o real das ilusões criadas por seu subconsciente adormecido enquanto seu corpo mantinha-se desperto.
Todas as noites, após despertar do mesmo pesadelo, Fred dirige-se ao banheiro com o propósito de mergulhar o rosto em água gelada para se certificar que estava desperto e o estranho sujeito havia permanecido em seu universo onírico, e, por diversas vezes, o pesadelo lhe acompanhou. Ao olhar no espelho, ele pode enxergar no reflexo do que deveria ser seu rosto, os traços sinistros daquele sujeito mesclado à sua própria face. Seus lábios lhe sorriam sarcásticos, seus olhos lhe inquiriam, lhe penetravam, como se dissessem... Seu sonho tornar-se-á real. Pagaria o preço?
Aquela tortura, aos poucos, fora se tornando mais intensa. Em devaneios insanos ou assustadora realidade, Fred já conseguira ouvir a voz lhe inquirindo sobre seus sonhos mesmo estando acordado. Seu corpo cansado devido à escassez de horas dormidas não lhe permitiria dizer que se encontrava totalmente desperto, mas não dormia quando em pé na cozinha, enquanto entornava um café reforçado em uma xícara pode ouvir como que um sussurro próximo a seu ouvido... Diga-me o valor!
Fato que tornou-se a repetir dias depois, quando chorando sentado no sofá de sua sala, com o corpo debruçado sobre a mesinha central, segurava em sua frente com o cuidado de ambas as mãos, a foto da doce Sophia, sua noiva... Há três meses falecida.
Desde a morte de sua amada, Fred nunca mais tivera paz. Desde a morte de sua amada, suas noites passaram a ser visitadas. Primeiro pela própria Sophia. Fred ouvia no vazio escuro de sua mente adormecida, a voz de sua noiva repetindo dezenas de vezes o mesmo pedido feito por esta na noite de seu falecimento, ao saírem de uma festa, Sophia pediu apenas que Fred entregasse as chaves do carro para um amigo que estava sóbrio. Pedido que, quando feito, Fred ignorou. Logo em seguida, os pedidos cessavam e o som que eclodia em sua cabeça o fazia despertar em lágrimas. Ele ouvia o grito de pavor de Sophia, o mesmo grito que ele ouviu da boca de sua amada segundos antes de seu carro se chocar contra um poste, pondo fim à vida da garota e dos sonhos de ambos. O som desse grito fora a ultima vez que Fred ouvira a voz de sua amada em vida, mas, nas noites que sucederam a tragédia, em seus pesadelos, ele ainda a ouvia gritar.
Com o passar dos dias, Sophia foi dando lugar ao sujeito de fala serena, mas suas perguntas insistentes não eram menos perturbadoras que o grito de adeus de sua amada lhe açoitando a consciência. A figura obscura de um homem de branco com um sorriso nos lábios, ofertava lhe vender o que havia lhe furtado... Seu sono, seus sonhos.
Fred estava nitidamente atormentado. Caminhava pela casa como se arrastasse as pernas presas ao solo. Os cabelos embrenhados e a barba por fazer não escondiam a palidez de sua face magra e a negritude ao redor de seus olhos fundos e cansados. Ele precisava dormir. Fred precisava sonhar... Qual é o valor de um sonho?
Sentou-se no sofá da sala, pegando novamente a foto de Sophia nas mãos, acariciou seu sorriso com as pontas dos dedos, tocando como se tocasse pétalas da mais rara flor. Ele chorou. Suas lembranças davam vida àquele sorriso. Sua saudade chamava por ela... Sophia.
Sua culpa lhe castigava. Fred estava sendo acusado, julgado e sentenciado pelo mais algoz dos tribunais... Sua consciência.
Chorando a saudades e punindo lhe a culpa pela perca de seu grande amor, Fred, sentado no sofá, adormeceu... Qual o valor de seu sonho?
Na penumbra de seu subconsciente, ainda na tênue linha entre o onírico e o real, o sujeito ressurgiu com a mesma oferta. Sorrindo perguntava, ofertava, lhe oferecia seus sonhos de volta, mas dessa vez, o sujeito não estava só, Fred pode ver, imersa na escuridão, ao longe, o vulto de uma segunda pessoa. Fixando a visão, ele a reconheceu... Sophia.
Ela estava sorrindo, acenando, chamando por Fred... Pagaria o preço?
A voz do sujeito repetindo a pergunta fez com que Fred despertasse, mas diferente das outras vezes, ele despertou sentindo enfim uma paz interior que há meses não sentia... Uma pela outra... Pagaria o preço?
Fred ouviu novamente, e agora não mais dormia, estava acordado. Levantou os olhos e avistou o sujeito sentado na poltrona logo à sua frente. Os lábios sorriam, os olhos lhe perscrutavam.
- Sim, eu pago! - Fred respondeu.
O estranho sujeito ainda sorrindo acenou com a cabeça em concordância selando assim um pacto silente entre ele e Fred, desaparecendo logo em seguida.
Fred deixa os olhos caírem sobre seu colo, sobre a foto de sua amada. Lágrimas vertiam por sua face, enquanto ele pegava aquele retrato com uma das mãos. Seus lábios sussurraram.
- Perdoe-me!
Enfiando a outra mão embaixo de si, embaixo da almofada do sofá que estava sentado, ele puxa um velho revolver calibre 38. Encosta-o em sua cabeça sem desviar o olhar do belo sorriso de sua amada eternizado no papel... Uma pela outra!
Fred puxou o gatilho, um jacto de sangue misturou-se com as lágrimas manchando a fotografia da jovem. O corpo do rapaz tombou sem vida, para na manhã seguinte, no cemitério municipal, uma cova ser encontrada aberta e completamente vazia. Em sua lápide, um nome... Sophia!

Um Conto de Márcio Renato Bordin

Comentários 6 Comentários:

Borboletas no Estômago disse...

fiquei me indagando quanto valem os meus...
cheguei a conclusão de que valem muito embora eu não saiba precisar quanto...

23 de março de 2011 às 13:41
Pedro Moreno disse...

Muito bom!

24 de março de 2011 às 11:24
Luiz Poleto disse...

Ótimo conto, Márcio! Psicologicamente perturbador, e quase um conto de romance no final. :)

24 de março de 2011 às 12:26
contosominosos disse...

Afiadíssimo, Marcião. Estás com a pena em riste!

25 de março de 2011 às 08:20
Tania Souza disse...

Márcio, que conto bom, consegue passar toda a angústia do personagem, o valor dos sonhos perdidos e o sorriso enigmático que oferta a negociata, muito sombrio. Um conto de terror e tristezas, acho, mas muito bom de ler.

9 de abril de 2011 às 02:51
Kyanja Lee disse...

Thato,

Também gostei muito de seu conto. Uau, que carga dramática! Quantos não carregam sob os ombros frustrações, arrependimentos; e quantos outros não continuam sonhando e desejando pagar qualquer preço pelos seus sonhos?

4 de fevereiro de 2012 às 07:04

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