Dedico este conto ao brilhante Valetim Fagim, preclaro amigo d’além-mar,
de quem roubei, qual Robin Hood, o ilustre nome
para entregá-lo a uma pobre personagem...
Algo de terrível se abateu sobre Dom. Joan Fagim, alcaide-mor de Ourense, naquele ano do Senhor de 1635.
A sua jovem e bela mulher, Dona Enelle, perdera, aos poucos, a pujança. O rubor de sua face se dissipara, cedendo lugar, em seu rastro fugidio, a uma mórbida lividez. Sim! Onde havia o carmim de suas salientes maçãs, agora se propagava a palidez de morte, que grassava o corpo inteiro, como o assalto de uma infecção lenta e progressiva. Depois, veio aquela aura nuviosa, asfixiante, que esfumava o seu lindo semblante provençal. Assomou um halo embaçado, da textura de treva indevassável, a cingir-lhe o corpo inteiro e a usurpar todos os seus encantos. Chegou a sombra violácea que atirava cada vez mais fundo os olhos lânguidos e febris. Veio, enfim, um abatimento de corpo e de espírito, uma prostração tão inesperada e impetuosa, que Dom Joan, aturdido em seu amor violento, apelou aos médicos da Corte, que nada puderam fazer, porque desconheciam a origem dessa estranha e enigmática enfermidade.
Oh, Dom Joan! Não será o castigo? Não haverá aí o dedo da justiça de Deus? Porque Dom Joan, caído de um amor insano pela jovem francesa, mandara a própria mulher ao cadafalso, coberta de injúrias e de opróbrio. E, mal se casara com Dona Enelle, mal aquecera Dom Joan o seu leito de viúvo, e a jovem esposa se pôs a definhar. Mas o amor de Dom Joan era cego e arrebatado. Daria a própria vida pela higidez de Dona Enelle. Custasse o que custasse, ele a arrancaria das garras de Tanatos. Nem que, num gesto extremo, abjurando ao Padre Eterno, tivesse de recorrer a Le Flam, o mago abjeto, de quem ouviu, secretamente, a própria sentença de morte. Sim! Somente cedendo sua energia vital à Dona Enelle, poderia o alcaide enlouquecido perseverar em um futuro para a jovem consorte, antes tão bela, mas agora irremediavelmente moribunda. Diz-se que Dona Enelle, em seu leito de morte, ao saber dos intentos do marido, tentou, em vão, dissuadi-lo de tão desairosa loucura. Mas a recusa da esposa, de faces encovadas e cabelos enrediços, ainda mais fomentava as lúgubres intenções do velho alcaide, mais ainda tornava delirante o seu amor, aquela paixão que nem os céus poderiam aplacar.
Então, invocando os espíritos ancestrais, Le Flam, sacerdote de Yog-Sothoth, preparou D. Joan para a imolação. Com as mãos atadas nas costas, e firmemente amarrado pelos pés, o alcaide foi içado por uma vigorosa corda a uma trave do teto para ser sacrificado. Haveria de ser assim. A eficácia do que seria feito subordinava-se à disposição voluntária do imolado. O cordeiro teria de oferecer-se espontaneamente em sacrifício, pelo amor de Dona Ennele, enquanto o plenilúnio ampliava enormemente o poder dos Antigos.
- Yog-Sothoth! Gy-Yagin! Alyah, alyah! – exclamava o sacerdote das sombras ancestrais. –Yog-Sothoth!
O sacerdote impôs a mão na fronte de Dom Joan. Ao mínimo contato com os dedos nodosos do sacerdote, o alcaide pôs-se a se debater e a espumar como um cão epiléptico. A mulher, de olhos fechados, não viu a corrente etérea, azulada, que escorria da fronte do marido para a mão do bruxo ancião, que avidamente absorvia os feixes de pequenos raios cintilantes. Em pouco tempo, o homem pênsil entrou em um processo de definhamento acelerado. As carnes murcharam e a pele colou-se aos ossos angulosos e pontudos. As faces secaram. Os olhos escorregaram de vez para o fundo das órbitas. E as bordas dos lábios, reviradas para dentro, como se produto de uma invaginação grotesca, escondiam um sorriso sinistro e atroz.
Ora, enquanto Dom Joan Fagim definhava, o sacerdote adquiria um vigor extraordinário. A energia que recebia restabelecia-lhe os músculos fatigados, inundava-o de carnes torneadas, purificava-lhe as veias e as artérias enrijecidas.
O sacerdote arrebatou o punhal que trazia pendente das vestes cerimoniais. Com um talho preciso e fundo, colheu, em um pequeníssimo cálix de marfim, o sangue que restara no corpo de Dom Joan. O sacerdote de Yog-Sothoth bebeu do sangue inocente, selando assim o antiqüíssimo ritual.
Revigorado, correu para a mulher, que se voltava para ele de braços abertos, e, tomando-a pelas mãos sudorosas, beijou os lábios voluptuosos que lhe eram sofregamente oferecidos. Exclamou, então, o mago, despindo-se dos paramentos sacerdotais:
- Eis-me, Pernelle! Eis aqui Nicholas Flamel, teu marido secular, novamente jovem!
N. do A. – Diz-se que Flamel, alquimista francês atuante no Séc. XIV (nas. c. 1330), descobriu o elixir da juventude, compartilhando-o com Pernelle, sua esposa. Conta-se que foi visto, pela última vez, em 1761, em um espetáculo da Ópera de Paris.
de quem roubei, qual Robin Hood, o ilustre nome
para entregá-lo a uma pobre personagem...
Algo de terrível se abateu sobre Dom. Joan Fagim, alcaide-mor de Ourense, naquele ano do Senhor de 1635.
A sua jovem e bela mulher, Dona Enelle, perdera, aos poucos, a pujança. O rubor de sua face se dissipara, cedendo lugar, em seu rastro fugidio, a uma mórbida lividez. Sim! Onde havia o carmim de suas salientes maçãs, agora se propagava a palidez de morte, que grassava o corpo inteiro, como o assalto de uma infecção lenta e progressiva. Depois, veio aquela aura nuviosa, asfixiante, que esfumava o seu lindo semblante provençal. Assomou um halo embaçado, da textura de treva indevassável, a cingir-lhe o corpo inteiro e a usurpar todos os seus encantos. Chegou a sombra violácea que atirava cada vez mais fundo os olhos lânguidos e febris. Veio, enfim, um abatimento de corpo e de espírito, uma prostração tão inesperada e impetuosa, que Dom Joan, aturdido em seu amor violento, apelou aos médicos da Corte, que nada puderam fazer, porque desconheciam a origem dessa estranha e enigmática enfermidade.
Oh, Dom Joan! Não será o castigo? Não haverá aí o dedo da justiça de Deus? Porque Dom Joan, caído de um amor insano pela jovem francesa, mandara a própria mulher ao cadafalso, coberta de injúrias e de opróbrio. E, mal se casara com Dona Enelle, mal aquecera Dom Joan o seu leito de viúvo, e a jovem esposa se pôs a definhar. Mas o amor de Dom Joan era cego e arrebatado. Daria a própria vida pela higidez de Dona Enelle. Custasse o que custasse, ele a arrancaria das garras de Tanatos. Nem que, num gesto extremo, abjurando ao Padre Eterno, tivesse de recorrer a Le Flam, o mago abjeto, de quem ouviu, secretamente, a própria sentença de morte. Sim! Somente cedendo sua energia vital à Dona Enelle, poderia o alcaide enlouquecido perseverar em um futuro para a jovem consorte, antes tão bela, mas agora irremediavelmente moribunda. Diz-se que Dona Enelle, em seu leito de morte, ao saber dos intentos do marido, tentou, em vão, dissuadi-lo de tão desairosa loucura. Mas a recusa da esposa, de faces encovadas e cabelos enrediços, ainda mais fomentava as lúgubres intenções do velho alcaide, mais ainda tornava delirante o seu amor, aquela paixão que nem os céus poderiam aplacar.
Então, invocando os espíritos ancestrais, Le Flam, sacerdote de Yog-Sothoth, preparou D. Joan para a imolação. Com as mãos atadas nas costas, e firmemente amarrado pelos pés, o alcaide foi içado por uma vigorosa corda a uma trave do teto para ser sacrificado. Haveria de ser assim. A eficácia do que seria feito subordinava-se à disposição voluntária do imolado. O cordeiro teria de oferecer-se espontaneamente em sacrifício, pelo amor de Dona Ennele, enquanto o plenilúnio ampliava enormemente o poder dos Antigos.
- Yog-Sothoth! Gy-Yagin! Alyah, alyah! – exclamava o sacerdote das sombras ancestrais. –Yog-Sothoth!
O sacerdote impôs a mão na fronte de Dom Joan. Ao mínimo contato com os dedos nodosos do sacerdote, o alcaide pôs-se a se debater e a espumar como um cão epiléptico. A mulher, de olhos fechados, não viu a corrente etérea, azulada, que escorria da fronte do marido para a mão do bruxo ancião, que avidamente absorvia os feixes de pequenos raios cintilantes. Em pouco tempo, o homem pênsil entrou em um processo de definhamento acelerado. As carnes murcharam e a pele colou-se aos ossos angulosos e pontudos. As faces secaram. Os olhos escorregaram de vez para o fundo das órbitas. E as bordas dos lábios, reviradas para dentro, como se produto de uma invaginação grotesca, escondiam um sorriso sinistro e atroz.
Ora, enquanto Dom Joan Fagim definhava, o sacerdote adquiria um vigor extraordinário. A energia que recebia restabelecia-lhe os músculos fatigados, inundava-o de carnes torneadas, purificava-lhe as veias e as artérias enrijecidas.
O sacerdote arrebatou o punhal que trazia pendente das vestes cerimoniais. Com um talho preciso e fundo, colheu, em um pequeníssimo cálix de marfim, o sangue que restara no corpo de Dom Joan. O sacerdote de Yog-Sothoth bebeu do sangue inocente, selando assim o antiqüíssimo ritual.
Revigorado, correu para a mulher, que se voltava para ele de braços abertos, e, tomando-a pelas mãos sudorosas, beijou os lábios voluptuosos que lhe eram sofregamente oferecidos. Exclamou, então, o mago, despindo-se dos paramentos sacerdotais:
- Eis-me, Pernelle! Eis aqui Nicholas Flamel, teu marido secular, novamente jovem!
N. do A. – Diz-se que Flamel, alquimista francês atuante no Séc. XIV (nas. c. 1330), descobriu o elixir da juventude, compartilhando-o com Pernelle, sua esposa. Conta-se que foi visto, pela última vez, em 1761, em um espetáculo da Ópera de Paris.
1 Comentário:
Esse conto do Paulo é incrível, como tudo que ele escreve, mas o desfecho, a forma narrativa, tudo é surpreendente, boa escolha.
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