O Elixir da Juventude

terça-feira, março 1



Dedico este conto ao brilhante  Valetim Fagim, preclaro amigo d’além-mar,
de quem roubei, qual Robin Hood,   o ilustre nome
 para entregá-lo a uma  pobre  personagem...


Algo de terrível se abateu sobre Dom. Joan  Fagim,  alcaide-mor de Ourense, naquele ano do Senhor de 1635.

A sua jovem e bela mulher, Dona  Enelle,  perdera, aos poucos, a pujança.  O rubor de sua face se dissipara,    cedendo lugar,   em seu  rastro fugidio, a  uma  mórbida lividez. Sim! Onde havia o carmim de suas salientes maçãs,  agora se propagava a palidez de morte, que grassava o corpo inteiro, como o assalto de uma  infecção lenta e  progressiva. Depois, veio aquela aura nuviosa,  asfixiante, que  esfumava  o seu lindo semblante provençal. Assomou  um halo  embaçado, da textura de treva indevassável,  a cingir-lhe o corpo inteiro e a usurpar todos os seus encantos. Chegou  a sombra   violácea que atirava cada vez  mais fundo os olhos lânguidos e febris. Veio, enfim, um abatimento de corpo e de espírito, uma prostração tão inesperada e impetuosa, que Dom Joan, aturdido em seu amor violento, apelou aos médicos da Corte, que nada puderam fazer, porque desconheciam a origem dessa estranha  e enigmática enfermidade.

Oh, Dom Joan! Não será o castigo? Não haverá aí o dedo da justiça de Deus? Porque Dom Joan, caído de um amor insano  pela jovem francesa, mandara a própria mulher ao cadafalso, coberta de injúrias e de opróbrio. E, mal se casara com Dona Enelle,   mal  aquecera  Dom Joan o seu leito de viúvo, e a jovem esposa  se pôs   a definhar.   Mas o amor de Dom  Joan era cego e arrebatado. Daria a própria vida pela  higidez de Dona Enelle. Custasse o que custasse, ele a arrancaria das garras de Tanatos.  Nem que, num gesto extremo,  abjurando ao Padre Eterno,  tivesse de recorrer a Le Flam, o mago abjeto,  de quem ouviu, secretamente, a  própria  sentença de  morte. Sim!  Somente cedendo  sua energia vital à Dona Enelle,  poderia o alcaide enlouquecido perseverar em um futuro para a jovem consorte, antes tão bela, mas agora irremediavelmente moribunda. Diz-se que  Dona  Enelle,  em seu leito de morte, ao saber dos intentos do marido,  tentou, em vão, dissuadi-lo de tão desairosa  loucura. Mas a recusa da esposa, de faces encovadas e cabelos enrediços,  ainda mais fomentava as  lúgubres intenções do velho alcaide, mais ainda tornava delirante o seu amor, aquela paixão que nem os céus poderiam aplacar.

Então, invocando os espíritos ancestrais, Le Flam, sacerdote de Yog-Sothoth, preparou D. Joan para a imolação. Com as mãos atadas nas costas,  e firmemente amarrado pelos pés, o alcaide foi içado por uma vigorosa  corda a uma trave do teto  para ser sacrificado. Haveria de  ser assim. A eficácia do que seria feito subordinava-se à disposição voluntária do  imolado.   O cordeiro teria de oferecer-se espontaneamente  em sacrifício, pelo amor de Dona Ennele, enquanto o plenilúnio ampliava enormemente  o poder dos Antigos.

- Yog-Sothoth!  Gy-Yagin! Alyah, alyah! – exclamava o sacerdote das sombras ancestrais.  –Yog-Sothoth!

O sacerdote impôs a mão na fronte de Dom Joan. Ao  mínimo contato com os dedos nodosos do  sacerdote,  o alcaide pôs-se a se debater e a espumar  como um cão epiléptico.  A mulher,  de olhos fechados, não viu a corrente etérea, azulada, que escorria da fronte do marido para a mão do bruxo ancião,  que avidamente  absorvia os feixes de pequenos raios cintilantes.  Em pouco tempo,  o homem pênsil  entrou em um processo de definhamento acelerado.  As carnes murcharam e a pele  colou-se aos ossos angulosos e  pontudos. As faces secaram. Os olhos  escorregaram de vez para  o fundo das   órbitas.  E as bordas dos lábios,  reviradas para dentro,  como se produto de  uma invaginação  grotesca,   escondiam  um sorriso sinistro e atroz.

Ora, enquanto Dom Joan Fagim  definhava, o sacerdote adquiria um vigor extraordinário. A energia que recebia restabelecia-lhe  os músculos fatigados,  inundava-o de carnes torneadas,  purificava-lhe as veias e as artérias enrijecidas.

O sacerdote arrebatou o punhal que trazia pendente das vestes cerimoniais. Com um talho preciso e fundo, colheu, em um pequeníssimo cálix de marfim,  o sangue que restara no corpo de Dom  Joan. O sacerdote de  Yog-Sothoth bebeu do sangue inocente,  selando assim o antiqüíssimo  ritual.

Revigorado, correu para a mulher, que se  voltava para ele de braços abertos, e, tomando-a pelas  mãos sudorosas, beijou  os lábios voluptuosos que lhe eram sofregamente oferecidos. Exclamou, então, o mago,  despindo-se dos paramentos sacerdotais:

- Eis-me, Pernelle! Eis aqui Nicholas Flamel,  teu marido secular, novamente jovem!

N. do A. – Diz-se que Flamel, alquimista francês atuante no  Séc. XIV (nas. c. 1330), descobriu o elixir da juventude, compartilhando-o com Pernelle, sua esposa. Conta-se que foi visto, pela última vez,  em 1761, em um espetáculo da Ópera de Paris.


Um conto de Paulo Soriano

Comentários 1 Comentário:

Tânia Souza disse...

Esse conto do Paulo é incrível, como tudo que ele escreve, mas o desfecho, a forma narrativa, tudo é surpreendente, boa escolha.

19 de fevereiro de 2011 às 16:00

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