Desespero. Eu estava desesperado!
Minha esposa, apesar do que os outros diziam em contrário,
amava-me. Tenho a mais absoluta certeza disso. Amava-me, sim, lá do seu jeito
meio turrão de ser porque, a bem da verdade, ela não era muito dada a expressar
os próprios sentimentos. Há pessoas assim em qualquer família normal que se
preze. Há quem deteste discursos de aniversário, confraternizações de fim de
ano, declarações de amor a qualquer hora e toda sorte de acontecimentos
sociais. Elisa era assim, também. Nunca tive a oportunidade de ouvir dela o que
ela sentia por mim, mas isso pouco me importava. O que se sente pelo outro, às
vezes, não precisa ser traduzido em palavras, não é mesmo? Pode-se, muito bem,
“sentir-se” na pele, no olhar, no abraço, no gestual de carinhos.
Elisa, minha adorada esposa, encontrava-se jogada no canto do
quarto de dormir, o cômodo mais protegido de nossa casa. Queriam matá-la. A
turba de desocupados, violentos, ensandecidos, insensíveis, havia tomado à
frente do pequeno sobrado onde morávamos. Clamavam por vingança. A cidade
achava-se em polvorosa no mais completo caos. Mas não fora só a nossa cidade
que perdera-se na barbárie; a tragédia se propagara pelo país inteiro. O
massacre da população que se devorava não tinha precedentes históricos
conhecidos: “Zumbis”, “mortos-vivos”, “infectados”, ou sabia-se lá que nomes se
atribuíam aquelas “coisas” destituídas de humanidade, vagavam sem rumo, matando
e multiplicando a doença.
As pancadas na porta da frente, no intento de arrombá-la,
ocorriam cadenciadas. As criaturas nojentas tinham tido a idéia de usar algum
objeto pesado como aríete. Os móveis empilhados na entrada, a única entrada
desimpedida por grades de ferro, cediam terreno a cada estocada. A invasão
iminente me levava ao desespero, pois a preocupação não se dava por mim, mas se
dava por ela: Elisa, minha adorada esposa. Não, eu não queria perdê-la.
Prometera ao padre que a amaria e a respeitaria na alegria e na adversidade,
conquanto tal compromisso, naquelas circunstâncias, pudesse me causar a morte.
Quem ama sabe o quanto é doloroso não poder proteger a pessoa amada.
Quando os boatos chegaram a meu conhecimento de que a
população, movida pelo instinto de autopreservação, estava conseguindo deter os
mortos-vivos, aniquilando-os por meios que, naquele momento, pouco me
interessavam, a nossa situação familiar se havia ruído irreversivelmente: Elisa
fora atacada e infectada! E naquele momento terrível, digo-vos sinceramente,
senhores, dilacerava-me o coração ver a pobre coitada lutando incansavelmente
contra as correntes que a prendiam aos pés da pesada cama de estilo colonial,
de que tanto gostava. Ela já não era a mesma pessoa. O corpo, mal coberto pelos
trapos, carregado de enormes feridas abertas, o rosto esverdeado e indiferente,
onde se projetavam os olhos esbranquiçados pela doença, afligiam violentamente
os meus sentidos. Eu não sabia fazer outra coisa senão chorar e ficar sentado
na frente dela implorando o seu retorno.
Minha Elisa, às vezes, aparecia angustiada naquele rosto
transfigurado, como alguém que, se afogando num rio caudaloso, procurasse num
impulso desesperado romper à superfície na busca da última golfada de ar. Estes
breves momentos, não raros, levavam-me a um sentimento de aflição e impotência
ainda maiores. Os olhos de minha amada surgiam nos globos esbranquiçados e
conectavam-se com os meus, passando-me uma mensagem desesperadora: “me ajude,
por favor.” E antes que eu pudesse dizer qualquer coisa inteligível, minha
esposa se afundava naquela criatura abjeta; o horror voltava-me em ondas
sucessivas a cada tentativa que ela fazia para comunicar-se comigo.
O hall de entrada, após os sucessivos golpes da turba, cedera
causando o enfraquecimento da improvisada barricada de móveis. Eu não tinha
muito tempo! Fui até o corredor do segundo andar e olhei para baixo. No vão da
porta entreaberta, algumas cabeças nervosas, com braços invasores, tentavam
empurrar o amontoado de sofás, mesas, armários e cadeiras. Uma daquelas
cabeças, das que forçavam à entrada, me percebeu no alto da escada.
— Parem. – Gritou Victor, meu melhor amigo. Ele fora
testemunha de minha união matrimonial com Elisa e sabia o quanto ela me era
preciosa.
Todos pararam.
— Amigo, meu irmão. – Disse ele, em voz alta e emocionada,
dando início ao trabalho de me convencer o que todos na cidade consideravam
como o melhor para mim. - Não adianta protegê-la. Não faça isso. Elisa já
morreu há muito. Esta coisa que você diz ser a sua mulher, me perdoe o áspero
das palavras, não passa de um animal doente infectado e contagioso. Ela precisa
ser sacrificada! Não há cura, não há salvação, não há solução na terra que a
traga de volta!
Olhei-os com nojo.
— Não! Nenhum de vocês há de encostar um dedo em minha esposa
enquanto eu estiver vivo.
Minha decisão irrevogável, como sabia, provocou o ódio do
grupo empedernido em dar cabo da única coisa de valor para mim no plano
terreno. Eles voltaram-se a arremeter esforços no sentido de forçar a entrada e
já não precisavam de muito para invadir a minha casa.
Voltei para Elisa, decidido, já sabendo o que iria fazer. Não
me dei o menor trabalho de refletir sobre os meus atos porque já o fizera
antes, nas incontáveis horas em que estive preso aquele quarto com ela. Fui até
à janela, lancei um olhar já saudoso à pequena cidade que voltava a sua
normalidade, despi-me, e num movimento rápido me joguei de costas na cama.
— Venha querida. – Mal cheguei a terminar o convite e ela me
atacou esfomeada.
Num único pulo, Elisa me assaltou violenta; uma das mãos me
foi ao rosto forçando minha cabeça para o fundo do colchão, a outra apertou uma
de minhas pernas no intento de imobilizar-me e, sem a menor indecisão, sem o
menor remorso, enterrou as mandíbulas animalescas em minha barriga. Se pensam
vocês, meus amigos, a quem envio este relato psicografado após minha recente
morte, que me arrependi ao sentir as primeiras mordidas. Não! A dor foi terrível, a dor foi
indescritível porque não queiram sequer imaginar o que é ser devorado vivo. O
sofrimento daí decorrente é algo que eu não desejaria nem para o meu pior
inimigo.
Mas... no momento derradeiro, no estertor da morte, em meio
àquela agonia, onde a percepção das coisas se confundem e nos enganam, pude ser
agraciado na constatação de um fato que atormenta o imaginário das pessoas.
Sempre me disseram que no momento final, quando o moribundo entrega-se à
conformidade de seu destino, mesmo aquele que sofre a dor atroz e os delírios
febris das doenças mais torturantes, um instante de lucidez lhe é dado como
recompensa para despedir-se do mundo terreno. E assim o foi comigo!
Elisa devorava minhas entranhas, mastigava minha carne,
quando o movimento parou de súbito! Meu corpo, torturado pela dor violenta, num
repente, adormecera anestesiado e senti uma trégua no sofrimento. E a vi pela
última vez. Sim, senhores, eu a vi! Ela apareceu lentamente no foco de minha
visão. A fisionomia retorcida pela virulência da doença ainda lhe cobria o
rosto pelo qual um dia me apaixonara. O meu sangue impregnado nela, respingava do nariz, dos longos
cabelos, da boca cheia, de onde escorria a baba do que estivesse a mastigar e
no conjunto estarrecedor apresentado a mim, consegui extrair “a mensagem” do
esbranquiçado medonho de seus globos oculares. Foi através deles, dos olhos,
que a alma de minha adorada esposa queria dizer-me o que, apesar de eu fingir
não dar importância, sempre quis ouvir: “Eu te amo”.
Aquele instante mágico, efêmero, não passou mais do que três
ou quatro segundos, porque em seguida ela enterrou o rosto novamente em minhas
entranhas e continuou a me devorar. No entanto, afirmo sem medo de me julgarem
louco: Todo o sofrimento valeu à pena, valeu sim! Sou sabedor de que causei
traumas psicológicos, noites insones e a perda da fé no divino em muitas das pessoas
que invadiram nosso quarto àquela noite. Não lhes peço desculpas, de modo
algum, tampouco ei de perdoá-las!
Quero que todos eles, malditos sejam, fiquem a ruminar
pensamentos, a vida inteira se preciso for, para entenderem o sorriso que
perpassava minha fisionomia enquanto minha adorada Elisa saciava a sua fome!
Conto De Afonso Luiz Pereira
Desespero. Eu estava desesperado!
Minha esposa, apesar do que os outros diziam em contrário, amava-me. Tenho a mais absoluta certeza disso. Amava-me, sim, lá do seu jeito meio turrão de ser porque, a bem da verdade, ela não era muito dada a expressar os próprios sentimentos. Há pessoas assim em qualquer família normal que se preze. Há quem deteste discursos de aniversário, confraternizações de fim de ano, declarações de amor a qualquer hora e toda sorte de acontecimentos sociais. Elisa era assim, também. Nunca tive a oportunidade de ouvir dela o que ela sentia por mim, mas isso pouco me importava. O que se sente pelo outro, às vezes, não precisa ser traduzido em palavras, não é mesmo? Pode-se, muito bem, “sentir-se” na pele, no olhar, no abraço, no gestual de carinhos.
Elisa, minha adorada esposa, encontrava-se jogada no canto do quarto de dormir, o cômodo mais protegido de nossa casa. Queriam matá-la. A turba de desocupados, violentos, ensandecidos, insensíveis, havia tomado à frente do pequeno sobrado onde morávamos. Clamavam por vingança. A cidade achava-se em polvorosa no mais completo caos. Mas não fora só a nossa cidade que perdera-se na barbárie; a tragédia se propagara pelo país inteiro. O massacre da população que se devorava não tinha precedentes históricos conhecidos: “Zumbis”, “mortos-vivos”, “infectados”, ou sabia-se lá que nomes se atribuíam aquelas “coisas” destituídas de humanidade, vagavam sem rumo, matando e multiplicando a doença.
As pancadas na porta da frente, no intento de arrombá-la, ocorriam cadenciadas. As criaturas nojentas tinham tido a idéia de usar algum objeto pesado como aríete. Os móveis empilhados na entrada, a única entrada desimpedida por grades de ferro, cediam terreno a cada estocada. A invasão iminente me levava ao desespero, pois a preocupação não se dava por mim, mas se dava por ela: Elisa, minha adorada esposa. Não, eu não queria perdê-la. Prometera ao padre que a amaria e a respeitaria na alegria e na adversidade, conquanto tal compromisso, naquelas circunstâncias, pudesse me causar a morte. Quem ama sabe o quanto é doloroso não poder proteger a pessoa amada.
Quando os boatos chegaram a meu conhecimento de que a população, movida pelo instinto de autopreservação, estava conseguindo deter os mortos-vivos, aniquilando-os por meios que, naquele momento, pouco me interessavam, a nossa situação familiar se havia ruído irreversivelmente: Elisa fora atacada e infectada! E naquele momento terrível, digo-vos sinceramente, senhores, dilacerava-me o coração ver a pobre coitada lutando incansavelmente contra as correntes que a prendiam aos pés da pesada cama de estilo colonial, de que tanto gostava. Ela já não era a mesma pessoa. O corpo, mal coberto pelos trapos, carregado de enormes feridas abertas, o rosto esverdeado e indiferente, onde se projetavam os olhos esbranquiçados pela doença, afligiam violentamente os meus sentidos. Eu não sabia fazer outra coisa senão chorar e ficar sentado na frente dela implorando o seu retorno.
Minha Elisa, às vezes, aparecia angustiada naquele rosto transfigurado, como alguém que, se afogando num rio caudaloso, procurasse num impulso desesperado romper à superfície na busca da última golfada de ar. Estes breves momentos, não raros, levavam-me a um sentimento de aflição e impotência ainda maiores. Os olhos de minha amada surgiam nos globos esbranquiçados e conectavam-se com os meus, passando-me uma mensagem desesperadora: “me ajude, por favor.” E antes que eu pudesse dizer qualquer coisa inteligível, minha esposa se afundava naquela criatura abjeta; o horror voltava-me em ondas sucessivas a cada tentativa que ela fazia para comunicar-se comigo.
O hall de entrada, após os sucessivos golpes da turba, cedera causando o enfraquecimento da improvisada barricada de móveis. Eu não tinha muito tempo! Fui até o corredor do segundo andar e olhei para baixo. No vão da porta entreaberta, algumas cabeças nervosas, com braços invasores, tentavam empurrar o amontoado de sofás, mesas, armários e cadeiras. Uma daquelas cabeças, das que forçavam à entrada, me percebeu no alto da escada.
— Parem. – Gritou Victor, meu melhor amigo. Ele fora testemunha de minha união matrimonial com Elisa e sabia o quanto ela me era preciosa.
Todos pararam.
— Amigo, meu irmão. – Disse ele, em voz alta e emocionada, dando início ao trabalho de me convencer o que todos na cidade consideravam como o melhor para mim. - Não adianta protegê-la. Não faça isso. Elisa já morreu há muito. Esta coisa que você diz ser a sua mulher, me perdoe o áspero das palavras, não passa de um animal doente infectado e contagioso. Ela precisa ser sacrificada! Não há cura, não há salvação, não há solução na terra que a traga de volta!
Olhei-os com nojo.
— Não! Nenhum de vocês há de encostar um dedo em minha esposa enquanto eu estiver vivo.
Minha decisão irrevogável, como sabia, provocou o ódio do grupo empedernido em dar cabo da única coisa de valor para mim no plano terreno. Eles voltaram-se a arremeter esforços no sentido de forçar a entrada e já não precisavam de muito para invadir a minha casa.
Voltei para Elisa, decidido, já sabendo o que iria fazer. Não me dei o menor trabalho de refletir sobre os meus atos porque já o fizera antes, nas incontáveis horas em que estive preso aquele quarto com ela. Fui até à janela, lancei um olhar já saudoso à pequena cidade que voltava a sua normalidade, despi-me, e num movimento rápido me joguei de costas na cama.
— Venha querida. – Mal cheguei a terminar o convite e ela me atacou esfomeada.
Num único pulo, Elisa me assaltou violenta; uma das mãos me foi ao rosto forçando minha cabeça para o fundo do colchão, a outra apertou uma de minhas pernas no intento de imobilizar-me e, sem a menor indecisão, sem o menor remorso, enterrou as mandíbulas animalescas em minha barriga. Se pensam vocês, meus amigos, a quem envio este relato psicografado após minha recente morte, que me arrependi ao sentir as primeiras mordidas. Não! A dor foi terrível, a dor foi indescritível porque não queiram sequer imaginar o que é ser devorado vivo. O sofrimento daí decorrente é algo que eu não desejaria nem para o meu pior inimigo.
Mas... no momento derradeiro, no estertor da morte, em meio àquela agonia, onde a percepção das coisas se confundem e nos enganam, pude ser agraciado na constatação de um fato que atormenta o imaginário das pessoas. Sempre me disseram que no momento final, quando o moribundo entrega-se à conformidade de seu destino, mesmo aquele que sofre a dor atroz e os delírios febris das doenças mais torturantes, um instante de lucidez lhe é dado como recompensa para despedir-se do mundo terreno. E assim o foi comigo!
Elisa devorava minhas entranhas, mastigava minha carne, quando o movimento parou de súbito! Meu corpo, torturado pela dor violenta, num repente, adormecera anestesiado e senti uma trégua no sofrimento. E a vi pela última vez. Sim, senhores, eu a vi! Ela apareceu lentamente no foco de minha visão. A fisionomia retorcida pela virulência da doença ainda lhe cobria o rosto pelo qual um dia me apaixonara. O meu sangue impregnado nela, respingava do nariz, dos longos cabelos, da boca cheia, de onde escorria a baba do que estivesse a mastigar e no conjunto estarrecedor apresentado a mim, consegui extrair “a mensagem” do esbranquiçado medonho de seus globos oculares. Foi através deles, dos olhos, que a alma de minha adorada esposa queria dizer-me o que, apesar de eu fingir não dar importância, sempre quis ouvir: “Eu te amo”.
Aquele instante mágico, efêmero, não passou mais do que três ou quatro segundos, porque em seguida ela enterrou o rosto novamente em minhas entranhas e continuou a me devorar. No entanto, afirmo sem medo de me julgarem louco: Todo o sofrimento valeu à pena, valeu sim! Sou sabedor de que causei traumas psicológicos, noites insones e a perda da fé no divino em muitas das pessoas que invadiram nosso quarto àquela noite. Não lhes peço desculpas, de modo algum, tampouco ei de perdoá-las!
Quero que todos eles, malditos sejam, fiquem a ruminar pensamentos, a vida inteira se preciso for, para entenderem o sorriso que perpassava minha fisionomia enquanto minha adorada Elisa saciava a sua fome!
Adorei! Estou sem palavras....
Um grande abraço!
Mto bom mesmo.
"Quem ama sabe o quanto é doloroso não poder proteger a pessoa amada."
Esse conto, numa análise mais ampla, poderia ser uma linda metáfora para muitas coisas no relacionamento humano.
Afonso, você descreveu as cenas gore com muita elegância. Não tem como ficar enojado do estado de Elisa, a gente começa a ficar com nojo de como os humanos olham e tratam seus doentes. Todo aquele que é diferente, o nosso próximo.
Em meio ao terror zumbi (que poderia ser a nossa realidade bem próxima) o Autor ainda conseguiu pincelar e esculpir momentos irresistivelmente poéticos.
A proteção, o carinho do marido da Elisa. Isto faz a gente ter esperanças na Humanidade.
Parabéns, Afonso!
Déia Tuam
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