Lágrimas de Lorenzo

terça-feira, março 1



  Lorenzo abraça forte o corpo de seu filho contra o peito. Envolve-o em seus braços. Acreditando ser capaz de transmitir todo o calor e vida do seu, ao corpo daquele pequeno ser. Lágrimas vertem de seus olhos como triste chuva torrencial. Vertem, nos lábios frios que outrora exibiu largo e contagiante sorriso.

Ele beija docemente a testa de seu filhote, sua prole, sua cria. Pedindo a Deus que o devolvesse, que o tempo parasse, retrocedesse, que aqueles lábios voltassem a sorrir. As lembranças surgem em sua memória: O som daquele choro tão esperado, anunciando o nascimento; a primeira palavra pronunciada, uma palavra simples, curta, mas pronunciada como se por lábios de anjo: Pai; lembra-se dos primeiros passos, saltitantes, trepidantes, desengonçados. Agora, apenas um corpo inerte com os olhos cerrados, sorriso apagado, passos e saltos que nunca mais serão dados. Uma voz silenciada com tanta coisa ainda a dizer.

É alta madrugada. Um manto negro estrelado cobre todo o céu. A lua reina poderosa, triunfante, aterrorizante. Todos os moradores do vilarejo andarilham pelas ruas escuras, de casa em casa, de galpão em galpão. Não deixam nenhum local sem ser averiguado. Estão esfomeados. Caçadores sanguinários em busca de sua presa, sua caça. A caça se esconde nesse momento dentro do celeiro em sua propriedade, segurando o filho morto nos braços.

Lorenzo, com as mãos trêmulas alisa os cabelos do garoto, penteando-os, queria deixá-lo com boa aparência, fazê-lo parecer tão vivaz como outrora fora. Com a mão esquerda ele ampara a cabeça do filho próxima a seu rosto, enquanto com a outra mão, acaricia sua face pálida. Com as pontas dos dedos toca-lhe os lábios procurando encontrar um último sorriso, um último pedido, um último chamado: Pai!

Os seres moribundos vagueiam próximos à propriedade de Lorenzo. Sentem o cheiro que emana de sua caça. Sabem, sentem que ela está por perto, e, não tardarão a encontrá-la. Invadem o velho casarão vasculhando em todos os cômodos. Nada escapa aos olhos famintos destes nefastos visitantes.

Lorenzo continua a acariciar o rosto do filho com as pontas dos dedos. Ri, inusitadamente, ao ver a pequena cicatriz no queixo do menino, fazendo-o memorar o primeiro tombo de bicicleta, a primeira vez em que ele se sentiu impotente diante de um perigo envolvendo o garoto. Mas ria ao lembrar-se do jeito todo atrapalhado como ele caiu em cima das roseiras de sua esposa, e de como ela ficou furiosa, nunca soube se ela ficou tão irritada pelas rosas, ou por Lorenzo ter soltado o filho à deriva n’uma bicicleta bem maior que o garoto. É uma das últimas lembranças que ele tem de sua companheira, falecida há dois anos, vítima de acidente. Deixando Lorenzo viúvo com um filho pequeno para criar. Ele sabe que foi graças ao garoto que ele resistiu à imensurável dor de perder o grande amor de sua vida. E, também por isso, ele vê na imagem de seu filho morto, um retrato de sua incapacidade. Não impediu que o filho caísse em cima das roseiras, não impediu o acidente da mulher ao deixá-la sair dirigindo sozinha naquela maldita noite chuvosa, e, não impediu que essa noite, seu filho fosse atacado por um assassino servo das trevas.

Lorenzo levanta a cabeça, fitando o nicho com a imagem de São Zenão de Verona, colocado ali a pedido da esposa, para que ela pudesse orar pelo filho todos os entardecer ao encerrar os seus afazeres diários. Lorenzo olha aquela imagem que observa atento o seu pesar, e de joelhos, com os olhos em prantos, aperta forte a cabeça do menino contra o peito.

- Por quê? Maldito! Por quê? Por que não atendeu ao pedido feito tantas vezes por ela? Por que não o protegeu? Não é esta a tua missão? Então, por que não a cumpriu? Maldito seja! Eu também tinha que vir aqui todas as noites suplicar para que o fizesse? Era isso? Será que só ela lhe pedir tanto não foi suficiente? Maldito! Maldito! Maldito...

Arqueado, Lorenzo aguarda por uma resposta, em vão. Ele paira por longos segundos com os olhos fixos, suplicantes, naquela imagem que assiste, em silêncio, a angústia de um pai. Desiste, praguejando contra Deus e todos os santos, voltando à atenção para seu falecido filho. Suas lágrimas encharcaram toda face de seu pequeno. Ele enxuga a singela testa com as mãos. Beijando-a novamente dezenas de vezes. Inquirindo a si mesmo, em sofridos soluços, o porquê de tamanha tragédia. Seus dedos descem tateando pouco a pouco, cada milímetro da face do garoto, como se aquela delicada pele alva fosse um manto sagrado recobrindo seu bem mais precioso, seu tesouro mais valioso, seu único filho.

A cada toque, uma dor, uma despedida, um adeus. Os dedos descem, acariciando cada centímetro quadrado da face do garoto. Tocando novamente os lábios gélidos, o queixo, a cicatriz, o pescoço frágil. Tateou com cuidado a causa mortis. Duas micro-feridas d’onde vertiam tênues linhas de sangue.

De ímpeto, o garoto abre os olhos vermelhos, escancarando os lábios ainda gélidos exibindo agora enormes e pontiagudas presas. Lorenzo agarra o garoto-vampiro pelos cabelos, evitando assim o bote em sua jugular. Escorre dos olhos desse pai, lágrimas vindas do intimo de seu ser. Rapidamente, ele usa a mão que até então acariciava para empunhar a estaca prontamente posta ao seu lado. Com um golpe certeiro, e sem titubear, Lorenzo atravessa a estaca no jovem coração do filho. Gritos de dor ecoam uníssonos pela noite. O grito de um pai vendo-se obrigado a tirar a vida de seu único filho. O grito de uma criança vampira, tendo uma enorme estaca transpondo seu corpo, libertando-o da maldição da vida eterna. Lorenzo sente como se o seu corpo estivesse sendo perfurado. A cada grito, Lorenzo força mais e mais a estaca no coração do filho. Implorava para que os gritos cessassem. Para que o garoto morresse, pondo um fim na dor de ambos. Golfadas de sangue mancham a camisa de um homem em prantos. A criança parecia resistir as estocadas, transformando aquela lamuria, aquele tormento, em segundos perenes.

- Meu filho...

Os vampiros estavam dentro do casarão, no quarto do garoto, quando ouvem os gritos vindos do celeiro. Os moribundos haviam acabado de descobrir o corpo de um dos seus, morto ao lado da cama. Lorenzo o matou pelas costas enquanto este atacava covardemente seu filho.

Enfim os gritos cessam.  Lorenzo vê seu único filho morrer pela segunda e última vez. Ele sente naquele momento, o seu coração também morrer. Seu coração não mais existe, assim como a sua vontade de viver.

Os vampiros cercam o celeiro. O homem repousa a cabeça do filho lentamente no solo, se levantando com a estaca manchada com o sangue de seu único descendente, o seu sangue, em punho. Os mortos vivos invadem o celeiro por todos os lados, dezenas deles. Em segundos, cercam um homem imerso no âmago da dor. Lorenzo já está morto, e pronto para reencontrar seus tão amados, filho e esposa. Agora é só questão de tempo...


Um conto de Márcio Renato Bordin

Comentários 2 Comentários:

Luiz Poleto disse...

Esse conto, junto com "Cinzas", é um dos meus preferidos. A angústia e o sofrimento podem ser sentidos na pele durante a leitura do conto. Envolvente, como todo conto deve ser.

24 de fevereiro de 2011 às 05:36
Tânia Souza disse...

Também gosto muito desse conto, é angustiante, sombrio e muito bem escrito.

24 de fevereiro de 2011 às 05:53

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